quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Eça & Outras


Rebobinando a cassette
         Já escrevi sobre o tema várias vezes desde 1983, quando na revista Gaya II (atas das I.as Jornadas de História Local e Regional de Vila Nova de Gaia), a páginas 536/537 publiquei um texto que tinha apresentado a 20 de novembro numa reunião do Gabinete de História e Arqueologia intitulado «Da necessidade premente da Ordem dos Historiadores», sem grande sucesso, como se depreende do que desde então aconteceu. Tendo adquirido formação académica para exercer as profissões de historiador, de arqueólogo, e desde 1991, de professor de Património, custa-me ainda hoje constatar que “muita gente” (leia-se estado, autarquias, comunicação social, empresas de turismo, escolas de todos os graus de ensino, grandes editoras e produtoras de filmes e eventos…) vive à custa da História que se vai divulgando ou reinterpretando, da Arqueologia que se vai descobrindo e do Património que se vai disponibilizando. “Muita agente”, menos os profissionais desta área. Antigos alunos meus com boas provas dadas e disponíveis na praça para quem os quiser avaliar, continuam no desemprego ou a trabalhar como precários ou à tarefa, enquanto muitos lugares públicos e privados são ocupados por “técnicos superiores” completamente inaptos (também os tive como alunos…) que são escolhidos em concursos elaborados por empresas de seleção de recursos humanos cujos critérios são estranhíssimos. Estamos já a ver os resultados. Ora acontece que já há também quem noutras profissões vá descobrindo que o problema não é exclusivo dos historiadores, arqueólogos e patrimoniólogos, o que, se é certo que não nos alegra, quer como cidadãos quer como profissionais, ao menos irmana-nos na desgraça de um país que cria cursos universitários como base de certas profissões mas depois admite que elas sejam publicamente exercidas por licenciados sem profissão definida ou com habilitações para outros mesteres.
         Ainda recentemente (27 de Agosto) Alexandra Bento, bastonária da Ordem dos Nutricionistas publicou no Público um artigo intitulado «Nutrição só por nutricionistas», afirmando que «para nós [nutricionistas], é importante a luta contra o exercício ilegal da profissão. Ela é feita em nome da saúde dos portugueses e na defesa do bom nome dos nutricionistas». É certo e conhecido que têm aparecido na praça pública e nos media a opinar sobre Ciências da Nutrição, chefes de cozinha, esteticistas, treinadores desportivos, gestores de cantinas e tutti quanti, quando estão definidos por lei os parâmetros do exercício da profissão de nutricionista e existem profissionais disponíveis no mercado de trabalho que as universidades legalmente criaram e entusiasmaram. Parafraseando a autora e o seu claro artigo, escreveria agora que «História só por historiadores. Para nós, é importante a luta contra o exercício ilegal da profissão. Ela é feita em nome do direito a uma correta instrução histórica dos portugueses e na defesa do bom nome dos trabalhadores das Ciências Históricas», contra a usurpação das nossas funções por quem não tem habilitações académicas para tal, e, portanto, falta de conhecimentos académicos para o seu exercício, quer seja no ensino, quer noutras situações nos setores público e privado. Mas também contra o seu exercício por inaptos, os que tendo feito cursos legais nesta área, nunca exerceram a profissão em nenhuma das suas valências de forma reconhecida pelos seus pares ou, no mínimo, através de estágios profissionalizantes com avaliação académica, e que por isso nada  contribuem para a dignificação deste setor laboral. É certo que nos falta a Ordem dos Historiadores, com os colégios profissionais de Arqueologia, História da Arte, Museus, Bibliotecas, Arquivos, Património, e outros a definir, mas já algo se avançou desde 1983 para cá com a fundação da Associação Profissional de Arqueólogos e mais recentemente com a criação do Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia. E compreende-se que assim seja se nos lembrarmos que a Arqueologia é o setor mais profissionalizado dos «trabalhadores das Ciências Históricas». Porém, a falta generalizada de consciência profissional nos cursos universitários de “Letras” e da maior parte dos profissionais desta área, bem assim como o permanente roubo do seu exercício profissional por parte de outros, o que até faz com que tal pareça “normal” e “legal”, para além da existência de licenciados com habilitações apenas “decorativas” e que exercem a não-profissão de “técnicos superiores”, sem quaisquer funções nas áreas de História e “ofícios correlativos”, tudo isto tem dificultado a dignificação do seu exercício profissional. Por outro lado, a dificuldade na obtenção de empregos compatíveis para os licenciados, mestres e doutores que escolheram esta área como profissão, integrada naquilo que se costuma correntemente chamar Cultura, deve-se também ao facto de existirem na sociedade confusões semânticas e estruturais entre as nossas atividades e as artes, espetáculos, divertimentos e entertenimentos (contra os quais nada tenho, mas sim contra a confusão em que os identificam com actividades culturais à priori) e onde proliferam em lugares de planeamento, de programação e de decisão profissionais de outras áreas que sobre Cultura têm vaguíssimas convicções, normalmente com prejuízo para os profissionais, e onde também se dá guarida àqueles que, tendo tido outras ocupações ao longo da vida, quando delas se cansam ou se reformam então é vê-los descobrir que “têm muito jeitinho para a cultura”, entendendo esta como as delícias do paraíso na Terra para as terceira e quarta idades. Ora Cultura, nas suas diversas manifestações profissionais e amadoras, é o que fica, não é o que passa. Lembro-me de um episódio recente em que um médico, que se tinha acabado de reformar, informou as câmaras deste país que queria agora dedicar-se ao estudo da Idade do Ferro em Portugal, que, no seu entender, estava mal estudada por os profissionais da área “não perceberem nada do assunto”, o que provavelmente seria verdade se estivesse a falar de oclusões no esfinter de Odin. Por isso pedia às autarquias dados locais para iniciar (finalmente, no seu entender) um glorioso estudo do tema. Verdade seja dita que algumas autarquias encarregaram os profissionais de Arqueologia do seu quadro de responderem ao pretendente. Ora a resposta correta que deram foi simples: como as universidades ainda não fecharam e não impõem limites de idade para a matrícula em qualquer curso, só lhe restaria candidatar-se a frequentar um curso de Arqueologia e, depois de obtida a respetiva licenciatura fazer depois o tirocínio profissional adequado. Talvez então ficasse a saber alguma coisa sobre a existência de brilhantes estudos sobre aquela época entre nós.
         Às vezes, também nestas questões, parece que ainda estamos no “país de Eça”, onde «… todas as vocações são binárias. Cada indivíduo é o que é, e é além disso outra coisa. A outra coisa é aquilo que ele faz mais gosto em ser» (QUEIRÓS & ORTIGÃO, As Farpas, maio de 1871). Só que, em muitos casos, o exercício dessa outra coisa funciona contra o exercício da legítima profissão dos acima referidos. Mas ninguém se importa e os deputados não legislam, pois, de um modo geral, devido à sua falta de instrução em História, quer eles, quer o cidadão comum não distinguem um romance cor-de-rosa em que a habitual Mary se passou a chamar rainha D. Leonor, de um verdadeiro estudo profissional. Querem um exemplo? Uma biografia de D. Afonso Henriques do grande historiador José Mattoso vai em terceira edição, enquanto um romance cheio de “suponhamos” sobre o mesmo tema escrito por um senhor que gosta de ser outras coisas (desde que não mexam com a sua profissão de jurista), já vai em mais de uma dezena. O povo prefere ficções e realmente não sabe o que é História.
         Foi o autor de O Conde de Abranhos que um dia escreveu que «as ciências históricas são a base fecunda das ciências sociais» (Prosas Bárbaras). Mas hoje as ciências sociais e as outras pensam poder dispensar os profissionais da História e substituí-los no ensino, na divulgação, na investigação e na produção por quaisquer outros, incluindo os inaptos e os tudólogos, que encontramos a exercer em tudo quanto é ocasião. Para acabar com tal praga, só aumentando a consciência, a visibilidade e a organização profissional dos trabalhadores do setor, que deverão questionar-se, sempre que se lhes deparem, sobre todos os casos de exercício indevido das suas profissões. E já agora, se concordamos inteiramente que «Nutrição só por nutricionistas», igualmente a História da Alimentação deve ser só feita por historiadores. Quanto à História da Nutrição, se o caso se justificar pela abordagem de áreas muito específicas desta ciência, deverá fazer-se através de uma boa parceria entre historiadores e nutricionistas. Não somos fundamentalistas, mas gostamos muito da nossa profissão e também queremos exercê-la de forma responsável e gratificante.

J. A. Gonçalves Guimarães
Mesário-mor da Confraria Queirosiana

Eventos passados

Busto da autoria de Hélder de Carvalho
                No passado dia 14 de setembro foi inaugurado em Belém, Lisboa um busto do poeta Taras Shevchenko, o fundador da moderna literatura ucraniana, da autoria do escultor Hélder de Carvalho, que no ato foi saudado pelas entidades ucranianas presentes e pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros daquele país. Uma apresentação da obra, ainda em gesso, tinha já figurado na capa do jornal As Artes Entre As Letras n.º248/249 de 31 de julho passado, acompanhado de um artigo na página 3 intitulado «Taras Shevchenko (1814-1861)» da autoria de Guilherme d’Oliveira Martins.

Cónegos de Lamego no Porto
A 16 de setembro, integrado no Seminário de História Religiosa organizado pela Universidade Católica Portuguesa, o historiador Prof. Doutor Nuno Resende apresentou na Sé do Porto uma conferência intitulada «Ilustres e ilustrados capitulares autorais no Cabido de Lamego (séculos XVII-XVIII).

Conferência por Carlos Reis
            A 17 de setembro decorreu na Universidade do Paraná, Brasil, uma conferência pelo Professor Doutor Carlos Reis da Universidade de Coimbra sobre «A Figuração Temporal da Personagem» na qual foram feitas reflexões sobre o estudo do tempo na narrativa centrado na figuração de personagens literárias.
Amândio Barros, Luís Humberto Marcos, Paula Carvalhal, Francisco Ribeiro da Silva
e J. A. Gonçalves Guimarães; fotografia de Susana Moncóvio
Comemorações de Fernão de Magalhães
            No dia 21 de setembro, no encerramento da exposição do Festival PortoCartoon dedicado à viagem de Fernão de Magalhães patente desde junho no Mosteiro de Corpus Christi em Vila Nova de Gaia (a única instituição portuguesa a quem o navegador deixou bens no seu testamento), teve lugar um colóquio sobre «Vila Nova de Gaia no tempo de Fernão de Magalhães» no qual foram conferencistas Francisco Ribeiro da Silva, professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e actual mesário da Misericórdia do Porto para a cultura e os museus, e Amândio Barros, professor do Instituto Politécnico do Porto, tendo servido de moderador J. A. Gonçalves Guimarães, do Gabinete de História, Arqueologia e Património, que dissertaram sobre Vila Nova de Gaia nos tempos da Expansão, tendo este último apresentado as mais recentes evidências documentais sobre a questão do nascimento e outras ligações do navegador a esta povoação portuária.
Seguidamente o Prof. Doutor Luís Humberto Marcos, director do Museu Nacional da Imprensa, falou sobre a importância da caricatura na sociedade atual, tendo encerrado a sessão a vereadora do Pelouro da Cultura e da Programação Cultural, Eng.ª Paula Carvalhal que, em nome do Município, ofereceu aos palestrantes o volume do Património Cultural de Gaia sobre Património Humano. Personalidades Gaienses, onde figura, com mais duzentas e cinquenta, o navegador Fernão de Magalhães.
Neste mesmo dia o Canal História iniciou a transmissão da série de seis episódios intitulada «A primeira viagem à volta do Mundo», a transmitir também nos próximos sábados a partir das 22,15, para um dos quais J. A. Gonçalves Guimarães gravou um depoimento sobre as ligações do navegador a Vila Nova de Gaia.

Livros e Revistas

No vol. 18 n.º 2 de maio/ agosto deste ano da revista «Cadernos de História da Educação» da Universidade Federal da Uberlandia (Brasil), Eva BAPTISTA publicou o artigo «Abordagem sócio-histórica da creche em Portugal. O caso de Vila Nova de Gaia (1887-1971): entre o nacional e o local»,p. 503-525, trabalho realizado no âmbito dos estudos a que se tem dedicado.



No passado dia 7 de setembro, o historiador Nuno Resende, docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, lançou no Museu Etnográfico da Casa da Granja, em Nespereira de Cinfães, o livro «Os dois faladores»: Folhetim sobre a História de Cinfães (1898-1899), publicado no jornal local A Justiça no final do século XIX por António Cardoso Pinto de Vasconcelos, do qual foi o organizador, escreveu a introdução e notícia biográfica do autor, bem assim como as notas elucidativas desta interessantíssima edição de um diálogo ferroviário entre um comendador vimaranense, que exalta as magnitudes da “cidade-berço”, e um jovem cinfanense que lhe contrapõe as vetustezas das terras do Aio, enquanto o seu amigo e companheiro de viagem prefere admirar a beleza contemporânea da filha do primeiro que seguia com seu pai a caminho da capital. Livro interessante, quanto mais não seja por, passados mais de cem anos, permitir equacionar as diferenças e as continuidades do território cinfanense.

Seminários, Fóruns e Palestras

Futebol Clube de Gaia uma associação centenária
Amanhã, dia 26 de setembro, pelas 21,30 horas, na palestra das últimas quintas-feiras do mês no Solar Condes de Resende, Licínio Santos, Mestre em História Contemporânea pela FLUP apresentará a evolução deste centenário clube fundado em 1908 no lugar da Serra do Pilar, sendo atualmente a associação desportiva mais antiga do concelho. Fundado para a prática do futebol, primou sempre pelo ecletismo desde os seus primórdios, o que foi fundamental para a sua sobrevivência, dedicando-se durante décadas à prática das modalidades de pavilhão. Contudo o futebol estava na sua génese, e o clube voltou à modalidade mais de meio século depois.

100 Anos da FLUP
            Na próxima sexta-feira dia 27 de setembro decorrerá no Arquivo Municipal Sophia de Mello Breyner em Vila Nova de Gaia um Colóquio integrado nas comemorações dos 100 Anos da FLUP subordinado ao tema «1919 no horizonte histórico» no qual será orador, entre outros, o Professor Doutor Jorge Fernandes Alves sobre o tema «No “crepúsculo do republicanismo”: o ano político de1919». Seguir-se-á a inauguração da exposição «1919 – O Tempo e o Olhar no ano da FLUP»

Atlantic Connection
No próximo dias 7 e 8 de outubro decorrerá na Faculdade de Letras da Universidade do Porto um Encontro de estudantes de pós-graduação, organizado pela Universidade do Porto, o CITCEM, e a Universidade alemã de Greifswald, subordinado ao tema «Atlantic Connections». Entre os vários oradores constantes no programa, J. A. Gonçalves Guimarães falará sobre «The Douro bar and its Porto merchantfleet in the constituticional period (1818-1825). Atlantic and transatlantic connections».

Exposições
XIV Salon d’Automne queirosiano
         Decorreram até ao passado dia 22 de Setembro as inscrições para a apresentação de trabalhos de arte no Salon d’Automne queirosiano que abrirá ao público no Solar Condes de Resende no próximo dia 9 de novembro e estará visitável até 30 de dezembro. Como habitualmente a mostra apresentará trabalhos artísticos de pintura, escultura, cerâmica, fotografia e artes gráficas de sócios da associação Amigos do Solar Condes de Resende – Confraria Queirosiana, profissionais e amadores, entre os quais os participantes no seu atelier de Pintura dirigido pela Prof. Pintora Paula Alves.
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Eça & Outras, III.ª série, n.º 133,quarta-feira, 25 de setembro de 2019; propriedade dos Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; C.te. n.º 506285685; NIB: 0018000055365059001540; IBAN: PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com; www.queirosiana.pt; confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J. A. Gonçalves Guimarães (TE-164 A); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia Cabral; colaboração: Susana Moncóvio.



1 comentário:

Jorge Barbosa disse...

Li o artigo e não podia estar mais de acordo; de facto, é pertinente a Ordem dos Historiadores com os demais Colégios profissionais para, de uma vez por todas, fazer justiça aos profissionais, de verdade, da História.
Lamentavelmente, uma bola de neve continua em descida vertiginosa por este Portugal fora.
Todos se grudam (consciente e inconscientemente) a essa bola de neve a que baptizaram com o nome de História e a que tudo, por onde rola, absorve ou passa, literalmente, por cima!
É preciso animar e movimentar os profissionais da História à criação da dita Ordem. Como?!
Parece-me que o campo de acção tem de passar pelas Faculdades de Letras (alunos e professores e investigadores) e pela Academia de História (os nossos velhos senadores da Grei).
Pode parecer uma utopia a criação da Ordem, mas Portugal também começou por uma ideia (que para muitos era de "justica") levada à acção e conseguiu impor-se na realidade a que pertencemos e já lá vão quase 900 anos até ao aqui e agora!