sexta-feira, 25 de março de 2011

Eça & Outras

O bei de Tripoli

No século XIX, quando as potências ocidentais queriam dar no Mediterrâneo um ar da sua arrogância disfarçado de «defesa da civilização», bombardeavam, a qualquer pretexto, o bei de Tunes e humilhavam-no, a ele, ao país e ao povo que ele representava. Claro que pretextos não faltavam e era fácil arranjá-los: os principais eram o ele não aceitar a utilização abusiva dos seus portos por franceses, italianos, americanos (já então!), ou ingleses, e a consequente roubalheira dos seus direitos, ou então o facto de uns tantos piratas marroquinos, argelinos, tunisinos, líbios, egípcios, etc. assaltarem os barcos mercantes e depois acoitarem-se nos portos do norte de África. Mas o culpado era sempre o bei (rei) de Tunes.
Para terem uma ideia da luta que já então se travava pelo domínio do Mediterrâneo, recordemos alguns factos históricos: a 14 de Junho de 1813, o Príncipe Regente D. João VI de Portugal, representado pelo capitão-de-mar-e-guerra Rosa Coelho, assinou um tratado de paz com a Regência de Argel, através de um documento que começava assim: «Sendo a Paz hum dos mayores Bens com que a Providência Divina abençoa as Monarchias, e os Estados…». Assim se concertou a paz, a qual incluía o resgate de cativos e o respeito pelos barcos portugueses que navegam no Mediterrâneo.
A mesma sorte não tiveram os argelinos com os ingleses, cuja frota, comandada por Lord Exmouth, a 29 de Agosto de 1816 bombardeia o porto de Argel, tendo então morrido 800 ingleses e 4000 argelinos, pois estes últimos defenderam cara a invasão da cidade.
Esta política mediterrânica das potências europeias teve como resultados, para não irmos mais atrás, que o Egipto só se tornou independente dos ingleses em 1922; a Líbia em 1943 dos italianos, mas dos franceses e ingleses só em 1951; a Palestina, ocupada pelos ingleses até 1948, está como se sabe; Marrocos livrou-se dos franceses em 1956, a Tunísia em 1967 e a Argélia venceu-os em 1962. Marrocos ainda tem “enclaves” espanhóis e os ingleses ocupam Gibraltar desde 1713, tendo-se mantido em Malta até 1964. Tudo problemas não resolvidos no século XIX.
A 14 de Dezembro de 1880, numa longa carta a Pinheiro Chagas, Eça de Queirós resume assim ironicamente a utilidade do bei de Tunes: «Sabe você o que eu fiz numa destas agonias, sentindo o moço da tipografia a tossir na escada, e não podendo arrancar uma só ideia útil do crânio, do peito, ou do ventre? Agarrei ferozmente da pena e dei, meio louco, uma tunda desesperada no bei de Tunes…
No bei de Tunes? Sim, meu caro Chagas, nesse venerável chefe de Estado, que eu nunca vira, que nunca me fizera mal algum, e que creio mesmo a esse tempo tinha morrido.
Não me importei. Em Tunes há sempre um bei; arrasei-o».
(Eça de Queirós Correspondência, 2008, I, p. 282).
Khadafi não é o bei de Tunes de Eça. É o bei de Tripoli dos dias de hoje. Como vimos, a Líbia, tal como Marrocos, Argélia, Tunísia, Egipto e Palestina, foi um dos países tristemente colonizados pelas potências ocidentais até tempos recentes. Em nome da civilização do petróleo e da geoestratégia ditada pelo canhão e não por quaisquer outros valores, e muito menos os cristãos.
O coronel Khadafi é um tiranete e, entre o povo líbio, há quem o endeuse e quem o deteste, como creio que acontece com outros líderes em quase todos os povos que foram colonizados e que têm desde então de se afirmar. Mas dará isso direito aos coronéis Sarkozy, Obama, Cameron e Barroso de bombardearem Tripoli como os ingleses de outrora? Estes coronéis, perdidas que foram as guerras do Vietnam e da Coreia do Norte, estando por resolver o impasse do Afeganistão, dos Balcãs, do Caucaso, do Iraque e da Palestina, querem agora criar uma nova frente de guerra?
Deviam lembrar-se que «não há semente mais fecunda do que uma gota de sangue de mártir, sobretudo quando cai num solo tão preparado para que ela furtifique» (Eça de Queirós, Ecos de Paris).
Pouco aprenderam com os desastres de outrora, estes novos coronéis. E quando não lhes ocorre melhor ideia, atiram-se ao bei de Tripoli, de Tunes, de Argel, do Cairo ou outro qualquer mais à mão, escondendo assim a sua falta de ideias para resolverem os graves problemas que grassam na Europa ou nos EUA. Na prática estão a aplicar os dividendos dos juros da dívida soberana que umas misteriosas entidades internacionais vão sacando aos governos dos países periféricos com a conivência das «grandes potências» e do «mercado», os bezerros de ouro que agora dizem que temos de adorar.
Mas não querem, para já, o bei de Tripoli: as guerras não se fazem para serem rápidas, pois de outro modo não são lucrativas. Sabemos, sempre soubemos, quais são realmente os “valores” dos que atacam o bei de Tunes ou o de Tripoli. Não esperem pelo meus aplausos.

J. A. Gonçalves Guimarães

O Progresso da decadência

Nota da redacção:
O texto que a seguir se transcreve foi-nos enviado por um confrade amigo. Tem uma linguagem que alguns podem considerar, num ou noutro passo, licenciosa. Esses fazem o favor de passar o texto à frente e não o ler. Consideramo-lo um testemunho pessoal interessantíssimo sobre a influência que Eça pode ter na vida e na inteligência das pessoas. Por isso o reproduzimos aqui com a devida vénia ao autor e ao jornal O Estado de S. Paulo.

«O País perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta a cada dia. A agiotagem explora o juro. A ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas é dramático. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País. Não é uma existência; é uma expiação. Diz-se por toda a parte: "O País está perdido!" (...) Por isso, aqui começamos a apontar o que podemos chamar de "o progresso da decadência”».
Não fui eu quem escreveu isso. Foi José Maria de Eça de Queirós, em 1871. Esta era a introdução de As Farpas que lançou com Ramalho Ortigão, ainda em Coimbra. Tinha pouco mais de 20 anos quando começou a esculachar em panfletos a mediocridade portuguesa no século 19, que nos legou essa herança lamentável. Nada mais parecido conosco.
Esses textos de Eça, reunidos sob o título de Uma Campanha Alegre, foram justamente os primeiros que me caíram na mão. Fiquei deslumbrado com a crítica social e de costumes. Não sabia que isso existia - eu era um menino. Creio que minha vida de jornalista de TV, rádio e jornal foi remotamente influenciada por ele. E revendo sua vida na internet, lembrei que Eça de Queirós nasceu em 25 de novembro de 1845 - daqui a uma semana. Assim, resolvi escrever de novo sobre ele.
Esse homem foi a maior paixão de minha vida. Com ele aprendi tudo: minha pobre escritura, o ritmo de seu texto, a importância do humor, do sarcasmo, e muito sobre a nossa ridícula loucura ibérica. Depois, descobri um livro roído de traças na casa de meu avô: O Primo Basílio, que minha avó tentou proibir ("Isso não é para criança!..."). Li-o, claro, e minha vida mudou. Era como se toda a névoa confusa da infância, minha família difícil de entender, vagas tias, vultos, rezas, tristes salas de jantar, secos padres jesuítas, tivesse subitamente se dissipado. O mundo ficou claro, através das personagens de Eça. Ali estavam explicados os arrepios de horror diante do teatrinho pequeno-burguês do Rio. O primo Basílio chegava com sua vaidade brutal e encarnava os cafajestes brasileiros, o padre Amaro me decifrava a tristeza sexual das clausuras do Colégio Jesuíta, o Conselheiro Acácio era a burrice solene de professores e políticos, Damaso Salcêde espelhava centenas de mediocridades gorduchas, Gonçalo Ramirez era o frágil caráter de hesitantes como eu. E vinha Thomaz de Alencar com sua literatice melancólica, vinha o banqueiro Cohen, esperto e corno, flutuava no ar o cheiro enjoado da Titi Patrocínio da Relíquia e, claro, as coxas de Adélia, sem falar no supremo frisson do famoso "minette" do primo Basílio na "Bovary" Luiza (razão básica da proibição alarmada de minha avó). E não só o desfile dos medíocres, mas as fileiras dos heróis ecianos: Carlos da Maia, João da Ega, Jacintho de Tormes, Fradique Mendes - cultos, elegantes, ricos, irônicos e corrosivos. Eça me dava a alma viva do século 19, atacando a estupidez endêmica, os sebastianistas de secretaria, os burocratas pulhas, os melancólicos de charutaria, os políticos demagogos, a burrice épica de um Pacheco ou do Conde de Abranhos - que fartura! Era uma sociologia ficcional de nosso destino de fracassados.
Eu o amava tanto que – acreditem-me postava na porta do colégio na hora da saída, para ver passar um homenzinho da vizinhança ali de Botafogo que era um sósia de Eça. Quem seria? Um bancário, um contador, quem? Tinha o rosto enfezado por um fígado ruim (como o Eça) que lhe franzia a boca num escárnio risonho. Tinha a mesma pastinha de cabelo sobre a testa curta, o olho rútilo, o mesmo bigode, o gogozinho de pássaro, os braços de cegonha, a palidez biliosa. Só lhe faltava o monóculo cravado no olho irônico. Vê-lo passar me encantava como diante de um ressuscitado. Em vez de correr atrás de meninas, eu fazia isso. Pode?
Até hoje, quando vejo a TV Câmara ou TV Senado, aquelas ricas jazidas de imbecilidades, vendo as caras, frases e gravatas, eu ainda penso: "Será que esses caras aí nunca leram Eça de Queirós?" Não. Nada. Eles navegam intocados em sua vaidade estúpida, em sua impávida ratonice.
Entre Machado de Assis e Eça de Queiroz sempre preferi o português ao nosso grande mulato. "Ah... porque o Machado é bem mais sutil!..." - diz-se, comparando-se, por exemplo, Capitu à Luiza do Primo Basílio (que o próprio Machado, ciumento, acusou de plágio da Eugenie Grandet). "Ahhh!... porque o Machado tem mais níveis de significação, mais complexidade psicológica, etc. e tal..." É verdade. Também acho. O grande Machado atingiu subtons que Eça nem tentou, por escolha. Machado é mais inglês; Eça é saído das costelas de Flaubert, Balzac e Zola e funda uma literatura caricatural contra as perdidas ilusões ibéricas, com um riso deslavado, com uma proposital "falta de sutileza" que resulta depois finíssima. Eça cria um realismo quase carnavalizado, sem anseios de transcendência. Machado é mais "nauseado". Deixa-se envolver por um pessimismo que o claro riso de Eça recusa. É verdade que as personagens de Eça não são tão "livres" quanto em Machado. O "tipo" eciano não tem grande "complexidade"; mas isso talvez seja o que nossa mediocridade social merece. Ele não cria personagens com uma psicologia sofisticada. Para ele, somos mesmo "tipos". Como em seu neto Nelson Rodrigues, há nele uma superficialidade "profunda", muito atual neste tempo em que os valores idealizados caíram no chão. Eça é um escritor político. Ele nos exibe o ridículo das figuras que se consideram nossos "timoneiros" do alto de sua gravidade falsa, com seus interesses mesquinhos no bolso dos jaquetões.

Arnaldo Jabor

Publicado em O Estado de S. Paulo, a 16 de Novembro de 2010

Antero de Quental por Helder de Carvalho, 2008.

Rostos e Pessoas

No Museu da Póvoa de Varzim o escultor Helder de Carvalho apresenta ao público até 3 de Abril uma exposição de retratos, rostos, bustos e figuras de conhecidas personalidades do mundo do Pensamento, da História, da Arte, da Música, da Literatura e da Medicina, desde o Padre António Vieira até Corino de Andrade, de Flávio Gonçalves a Paula Rego, de Carlos Paredes a Albano Martins e muitos outros rostos e figuras das nossas maiores referências.

Na procura da sua vera efígie o autor utilizou as técnicas de desenho, pintura e modelagem para lhes fixar os caracteres físicos e a expressão íntima.

Bronzes de Beatriz

No palácio Balsemão, à praça Carlos Alberto no Porto, entre 4 e 29 de Abril, estará aberta ao público uma exposição de bronzes de Beatriz Pacheco Pereira, com quatro dezenas de peças representando figuras masculinas e femininas vistas pela fundadora do Fantasporto.

Tese de Mestrado

Na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil) foi apresentada em 2007 por Flávia Regina Oliveira Leão a dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Literatura, “A diferenciada construção da personagem em Eça de Queiroz & Trindade Coelho: Singulariedades de uma rapariga loura e Manuel Maçores”, a qual foi orientada pela Prof.ª Doutora Maria José Goido Palo. A autora fez «uma aproximação estilístico-literária entre [os] dois contos… através da descrição comparativa da construção das suas personagens. Sabendo-as transitórias e transitivas entre duas realidades, a romântica e a realista…».
Cita no seu trabalho, a propósito de Eça, estudos de Ernesto Guerra da Cal, Wayne Booth, Mikhail Bakhtin e Jean Starobinski, e de Trindade Coelho, os de Segolin e ainda os de Lukács e Barthes.

Eça de Queirós por Augusto dos Santos, 1929.

Um busto de Eça

Fomos descobrir um desconhecido busto de Eça datado de 31 de Outubro de 1929 na Livraria Manuel Santos, Old & Rare Books, na Rua Professor Urbano de Moura, Centro Comercial VilaGaia, Loja 18, em Vila Nova de Gaia, perto da estação ferroviária das Devesas, que aqui reproduzimos com autorização do seu proprietário, que não o vende, por ele ser uma recordação pessoal de seu avô Augusto Lino dos Santos, notável barrista natural de Coimbrões (1888-1968) que foi também comandante dos Bombeiros Voluntários locais.


Jornadas culturais em Mogadouro

Como já noticiamos, a Câmara Municipal de Mogadouro e a Confraria Queirosiana vão levar a efeito as 1.as Jornadas Culturais de Mogadouro para recordarem os 150 anos do nascimento de Trindade de Coelho e homenagearem o escritor J. Rentes de Carvalho em Estevais de Mogadouro. O programa conta já com a participação de vários historiadores e literatos que aceitaram associar-se à iniciativa.
As inscrições para participação podem fazer-se junto da autarquia ou da Confraria Queirosiana.

Vinho espumoso Eça
Vinhos de Eça

Para além das comidas, desde o «pão quotidiano» até à mais requintada iguaria, também na obra de Eça existem alusões aos vinhos, tema esse já tratado, nem sempre com propriedade, por vários autores.
Por outro lado existem no mercado vinhos com alusões queirosianas ou de homenagem ao escritor. A própria Confraria criou o Porto reserva tawny “Confraria Queirosisana”, o Douro tinto reserva 2000 “Fraga Douro homenagem ao Marquês de Soveral” e o vinho espumoso “Eça”; a Fundação Eça de Queirós, produz o vinho verde “Tormes” e outros existiram ou existem capazes de satisfazerem as alusões à vida e obra do autor de Os Maias.
Como o assunto vinho é de primordial importância nacional, a Confraria Queirosiana decidiu criar o vinhosdeeca.blogspot.com, à vossa saúde!
E, já agora, passamos das companhias do cafezito para o brinde com Porto. É que o vinho é produzido em Portugal e o café ainda não.

Beber um Porto, ou não, com:

Sim, gostaria de beber um Porto com:

Howard Davies, director da London School of Economics, por ter aceitado dinheiro da Líbia e se ter demitido por isso, coisa rara num político; Artur Agostinho, um homem divertido; Elizabeth Taylor, pela recordação da sua beleza.

Não, não me apetece brindar com:

Saif al-Islam, filho de Khadafi, suspeito de pelágio na sua tese de doutoramento obtida na London School of Economics; Mira Amaral, o engenheiro que já nos quis vender centrais nucleares.

Eça & Outras, IIIª. Série, n.º 30 – Sexta-feira, 25 de Março de 2011
Cte. n.º 506285685 ; NIB: 001800005536505900154
IBAN:PT50001800005536505900154;Email:queirosiana@gmail.com;
confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com;
coordenação da página: J. A. Gonçalves Guimarães (TE-638); redacção: Fátima Teixeira; inserção: Amélia Cabral;
colaboração de J. Rentes de Carvalho; Teresa Sanches; Manuel Santos