domingo, 25 de junho de 2023

Eça & Outras

 Ano do Centenário do “Vencido da Vida” e diplomata Luís Maria Pinto de Soveral, Marquês de Soveral (1851-1922)

Caminheiros

Cada estrada à nossa frente é um desafio infinito a cada ponto de partida. Desde sempre os seres inquietos hesitaram entre o aconchego do lugar costumeiro e os imprevistos dos destinos a percorrer. Há quem não queira arriscar. Há quem não deixe de partir. Com os mais diversos pretextos, sozinho, a dois ou em bando. À procura do sortilégio cósmico, da milagrosa água, do saboroso vinho, de outras conversas, do quinhão de desconhecido a que se tem direito, da libertação de amarras pesadas ou leves, em busca de si próprio ou dos outros. Não sabemos desde quando se insinuou esta vontade no querer humano, mas desde tempos antigos que o motivo não foi sempre a busca de mais pão, melhor água, seguro abrigo, amores dadivosos. Foi-o quantas vezes em busca de paraísos prometidos a uns e roubados a outros, conflitos provocados aleivosamente justificados ou tenazmente apreendidos. Mas há também quem parta apenas pelo prazer de partir e de desconhecer; «A pé e de coração aberto percorro a estrada larga/ saudável, livre, o mundo à minha frente/ longa e cinzenta vereda se me oferece para percorrer/ até onde eu quiser/ daqui em diante não peço mais boa sorte pois a boa sorte sou eu mesmo/ daqui em diante não me lamento mais nem adio mais/ não careço de mais nada/ acabei com as minhas queixas interiores, bibliotecas, críticas rancorosas/ forte e contente sigo pela estrada larga» (Walt Whitman, Canção da Estrada Larga, tradução livre).

Desde sempre houve caminheiros, gente que se mete ao caminho sem motivo ou pelos mais diversos motivos. Quem quer entendê-los, e sobretudo se sobre eles pretende escrever, convém procurar os porquês revelados, mas também os escondidos, aqueles que, quantas vezes, nem o próprio admite que existam, pois a autojustificação conveniente sobeja-lhe. São assim as peregrinações caminhadas em busca de um lugar pré-determinado, as incursões com destino a aproveitar o que lá houver, e as deambulações tipo vamos indo e depois vê-se. Convém sempre distinguir o impulso individual do institucional para a sugestão da partida. O primeiro foi sempre mal visto e suspeitoso; o segundo deu origem a santuários de diversos bezerros de ouro, grandes deambulações e corpos estruturados de servitas. A liberdade de deambular foi sempre proporcional à posição social do caminheiro, dos apoios na viagem, da sua capacidade de auto-segurança. Mas também da rentabilização coletiva dos objetivos da viagem: emigrar para sustentar a família sempre foi doloroso mas entendido; desaparecer sem dar referências, uma anarquia inaceitável.

 Não admira pois que em períodos onde as restrições sociais e policiais mais afrouxaram tenham aparecido caminheiros militantes: a 20 de abril de 1916 partiram do Porto os estudantes José Teixeira e Alfredo Vieira para percorrerem «Portugal a pé em missão de estudo e propaganda do paiz, vivendo do producto dos bilhetes postaes que oferecem como recordação, ficando o custo à generosidade de V. Ex.ª». Propunham-se percorrer o Minho, Douro, Trás-os-Montes, Estremadura e Algarve, conforme consta de um folheto então impresso, onde aparece a sua fotografia em pé, um deles com o que parece ser um uniforme militar e cajado, arrimado a uma sacola pousada numa pequena mesa central e o outro, mais civil, com bornal suspenso do cinto sobre o casaco também expedicionário. Menos de um ano depois, a 10 de fevereiro de 1917, sai do Porto, Manuel Domingos Ramos, natural de Gaia, para percorrer a pé Portugal, do Minho ao Algarve, mas incluindo incursões até à fronteira em Trás-os-Montes, Beiras e Alentejo, como o indica o itinerário traçado num mapa de Portugal impresso a cores num postal, com a sua fotografia, na qual ostenta um boné institucional com placa metálica sobre a pala e um emblema na lapela, podendo tratar-se de um ferroviário. Tendo regressado a 24 de outubro de 1918 da prova do feito mandou imprimir o dito (hoje uma raridade da cartofilia) aí sugerindo «a fineza de lhe comprar este postal que fica à vossa generosidade».

Afora estas deambulações particulares, e das tradicionais e cíclicas romarias das aldeias aos santuários e ermidas mais próximos, a melhoria generalizada das estradas e dos transportes, mas também os grandes acontecimentos comemorativos, como a Exposição Internacional do Porto em 1865, que inaugurou o Palácio de Cristal, ou as comemorações henriquinas em 1894, puseram a percorrer as estradas caminheiros alavancados nestas novas justificações para meterem pés ao caminho, verem novidades, compararem experiências e, talvez, regressarem a casa. Estão por apurar os impactos destas deambulações na sociedade oitocentista e novecentista, quando os não privilegiados passaram o poder inscrever novas motivações no passaporte interno passado pelos governos civis. Que a desconfiança, pelo menos administrativa, sobre os caminheiros sem destino ou com destino pouco determinado, essa mantinha-se e até, em certas situações, acentuou-se.

Com o tempo e as transformações sociais, económicas e culturais, o caminhar transformou-se numa banalidade e numa terapia. Vai-se a qualquer lado por motivo nenhum, só para cumprir calendário doméstico ou para acrescentar um pequeno frisson ao tédio quotidiano. Já lá vai o tempo em que alguém tinha como objetivo: «Viajei por toda a parte viajável, li todos os livros de explorações e travessias – porque me repugnava não conhecer o globo em que habito até aos seus extremos limites, e não sentir continua solidariedade do pedaço de terra que tenho sob os pés com toda a outra terra que se arqueia para além. Por isso, incansavelmente exploro a História, para perceber até aos seus derradeiros limites a Humanidade a que pertenço, e sentir a compacta solidariedade do meu ser com a de todos os que me precederam na vida» (Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes). Caminhemos, pois, enquanto podemos escolher a estrada que não sabemos onde vai dar e nem sequer se nos convém.

J. A. Gonçalves Guimarães

Presenças da Confraria

A direção da associação Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana, através dos seus dirigentes, delegados ou associados e confrades, esteve presente, pelo menos, nos seguintes eventos durante os meses de maio e junho:

Ainda a 15 de maio J. A. Gonçalves Guimarães participou no programa «Conversas com História» de Joel Cleto no Porto Canal gravando informações históricas sobre a Casa dos Condes das Devesas em Vila Nova de Gaia.

No dia 1 de junho o mesmo historiador esteve na Casa da Cultura de Avintes a falar no programa «O Livro da Minha Vida» sobre a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, numa organização dos Amigos da Biblioteca Publica de Avintes.

Dia 4 de junho no Palácio do Freixo, no Porto, no Dia Nacional de Itália, por convite do Cônsul Honorário da República Italiana no Porto, Paolo Pozzan, e com a colaboração da Associazione Socio-Culturale Italiana del Portogallo Dante Alighieri, a ASCR-CQ esteve representada por José Manuel Tedim; Gonçalves Guimarães; Manuel Moreira e António Pinto Bernardo da direção, Cristiana Borges Ferreira, do Gabinete de Historia, Arqueologia e Património, Paula Carvalhal, vereadora da Câmara de Gaia; Manuel de Novais Cabral, diretor do Museu Nacional Ferroviário;  Salvato Trigo, reitor da Universidade Fernando Pessoa, além de outros, alguns dos quais em representação de diversas entidades. Como habitualmente, alguns dos elementos presentes foram rever o “Relicário D, João I”, peça monumental em prata da autoria do ourives Filipe José Bandeira que em 1934 a Câmara de Gaia ofereceu a Salazar e que este, por sua vez, o re-ofereceu à Câmara do Porto, ali em exposição (ver artigo de J. A. Gonçalves Guimarães na Revista de Portugal, n.º 14 de 2017).

João Nicolau de Almeida

Dia 10, na cidade do Peso da Régua, nas Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, por convite do Presidente da República, fez o habitual discurso alusivo à data e à região o Eng.º e Enólogo João Nicolau de Almeida, conhecido criador de vinhos do Douro. Por especial deferência do autor será o mesmo publicado na Revista de Portugal de novembro próximo.

Neste mesmo dia a União das Freguesias de Mafamude e Vilar do Paraíso, Vila Nova de Gaia, galardoou com a medalha de mérito o canteiro-ornatista António Pinto.

No dia 13, Nuno Resende, professor na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, guiou uma visita comentada ao Roteiro de Santo António de Vila Nova de Foz Côa, organizada pela autarquia com a colaboração do Museu da Casa Grande de Freixo de Numão.

Na antiga Companhia de Fiação de Crestuma, em Lever;
fotografia de Eva Baptista

Neste mesmo dia, a patrimonióloga Maria de Fátima Teixeira, do Gabinete de História, Arqueologia e Património (ASCR-CQ) conduziu uma visita guiada e comentada ao Parque Arqueológico do Castelo de Crestuma e ao complexo fabril da Companhia de Fiação de Crestuma em Lever para os alunos do 6.º ano do Colégio de Nossa Senhora da Bonança de Vila Nova de Gaia.

No passado dia 17 de junho a ASCR-CQ colaborou com a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia na organização das Jornadas Europeias de Arqueologia que decorreram no Solar Condes de Resende sob o tema «Descobertas Arqueológicas em Vila Nova de Gaia», as quais foram presididas pela Eng.ª Paula Carvalhal, vereadora do Pelouro da Cultura, tendo estado presentes muitos associados, confrades, arqueólogos e público em geral. Do programa constaram apresentações de resultados de escavações recentes numa necrópole encontrada nos terrenos da antiga cerca do Mosteiro de Corpus Christi e sobre o antigo hospício e capela, depois fábrica de cerâmica, do Senhor d’Além, realizadas por equipas de arqueologia de duas empresas que têm trabalhado neste município. O Gabinete de História, Arqueologia e Património (ASCR-CQ), através de J. A. Gonçalves Guimarães e Maria de Fátima Teixeira, apresentou o tema «Arqueologia do Campo de Batalha: fragmentos de munições do canhão Paixhans no Castelo de Gaia» a publicar no volume do Património Cultural de Gaia – Património Arqueológico (PACUG). Após o intervalo foi entregue ao Gabinete pelo Eng.º Joaquim Alexandre Ferreira Gomes, em nome de sua mãe e restante família, para vir a integrar as coleções municipais de arqueologia, um machado pré-histórico em pedra polida, achado no lugar de Lavadorinhos, Olival cujo estudo se encontra publicado na revista abaixo referida, a que se seguiu a preleção do Prof. Doutor Rui Morais da Faculdade de Letras da Universidade do Porto sobre «Notícia da última hora! Tritão e Nereide avistados a Norte do Douro».

Na noite de 23 de junho, véspera de São João, de novo para o Porto Canal e numa colaboração que já vai sendo habitual neste dia e hora, o historiador J. A. Gonçalves Guimarães falou sobre alguns aspetos dos festejos sanjoaninos durante o Cerco do Porto.

Revistas

Como acima está referido, no passado dia 17 de junho nas Jornadas Europeias de Arqueologia foi apresentada pelo seu coordenador, Doutor António Manuel S. P Silva, o primeiro número da nova série da revista Gaya. Estudos de História, Arqueologia e Património, editada pelo Gabinete de História, Arqueologia e Património da associação Amigos do Solar Condes de Resende e cuja publicação se insere nas comemorações dos 40 anos das 1.as Jornadas de História Local e Regional organizadas pelo Gabinete de História e Arqueologia de Vila Nova de Gaia em novembro de 1983. A nova série tem como diretor José Manuel Tedim, como coordenador o arqueólogo e historiador acima referido, e como editores-adjuntos J. A. Gonçalves Guimarães, José António Martim Moreno Afonso e Nuno Miguel de Resende Jorge e Mendes. O conselho editorial é formado por Adrião Palmiro Bessa Pereira da Cunha; António Manuel de Barros Cardoso; Eva Cristina Ventura Baptista; Francisco Ribeiro da Silva; Jorge Fernandes Alves; Luís Manuel de Araújo; e Silvestre de Almeida Lacerda.

Este número tem um texto de apresentação de José Manuel Tedim, a que se segue um outro sobre a origem do Gabinete e os conteúdos dos sete números da primeira série por J. A. Gonçalves Guimarães; segue-se «Um machado em pedra polida de Lavadorinhos (Olival, Vila Nova de Gaia)» por António Manuel S. P. Silva e Sérgio Monteiro-Rodrigues, e «Cale, Caeno, Gaia. Notas histórico-toponímicas» pelo primeiro destes autores. «A necrópole romana do Sameiro, Valadares – um contributo para o estudo dos seus materiais», de José André Macedo apresenta um desconhecido espólio romano de Gaia, a que se segue o estudo de «Cerâmicas e vidros da Antiguidade Tardia das escavações arqueológicas da Igreja do Bom Jesus de Gaia (Vila Nova de Gaia) – um estudo introdutório» por Joaquim F, Ramos, elaborado enquanto foi investigador do GHAP; seguem-se os artigos de Historia sobre «O Cooperativismo em Vila Nova de Gaia, de finais de Oitocentos aos alvores da República» por Licínio Santos e «O Leverense quinzenário republicano» por Maria de Fátima Teixeira, também ambos membros do GHAP. O último artigo é uma publicação póstuma do Professor Arquiteto Octávio Lixa Filgueiras, em tempos apresentada em Gaia mas nunca publicada, sobre «Os pseudo-rabelos dos estaleiros urbanos, Este número fecha com uma notícia fúnebre sobre o Prof. Doutor António Baptista Lopes, o catálogo das publicações da ASCR-CQ, o estatuto editorial e as normas de publicação. O preço de venda ao público é de 15 € (o que inclui IVA. embalagem, portes postais e envio) podendo ser pedida para queirosiana@gmail.com.

Colóquios e Palestras

Arqueologia na Madalena

No passado dia 2 de junho, no auditório da Junta de Freguesia da Madalena, Vila Nova de Gaia, decorreu um colóquio sobre «Arqueologia na Madalena 300 mil anos de ocupação humana», onde foram apresentados os seguintes temas: «O património arqueológico da Madalena: uma visão de conjunto» por António Manuel S. P. Silva; «O sítio do Cerro: um local pré-histórico na Madalena» por Sérgio Monteiro-Rodrigues; e «O Castro da Madalena: resultados das escavações entre 2000 e 2022» por António Manuel S. P. Silva e Edite Martins de Sá. A organização foi da Junta de Freguesia da Madalena com a colaboração do Centro de Arqueologia de Arouca (projeto ARQ-EDOV).

Painéis azulejares

No próximo dia 29, pelas 18,30 horas, no Solar Condes de Resende e via Zoom, na habitual palestra das últimas quintas-feiras do mês promovidas pela Confraria Queirosiana, a investigadora do Gabinete de História, Arqueologia e Património, Cristiana Borges Ferreira, falará sobre «Iconografia da História de Portugal em painéis azulejares: o caso da Estação de S. Bento no Porto».

_____________________________________________________________________

Eça & Outras, III.ª série, n.º 178, domingo, 25 de junho de 2023; propriedade da associação cultural Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana (Instituição de Utilidade Pública); C.te n.º 506285685; NIB: 0018000055365059001540; IBAN: PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com; www.queirosiana.pt; confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação do blogue e publicação no jornal As Artes Entre As Letras: J. A. Gonçalves Guimarães (TE-164 A); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia Cabral.