quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Eça & Outras

O haxixe na vida de Eça e de outras pessoas.

O haxixe é um estupefaciente proveniente das flores fêmeas da Cannabis sativa, variedade indica, também conhecido como marijuana ou outras denominações. Fuma-se, bebe-se e come-se. Durante a sua viagem com o conde de Resende ao Egito em 1869, Eça de Queirós, então com vinte e quatro anos, experimentou no Cairo o haschich e partilhou a descrição dos seus efeitos com os amigos em Lisboa, para quem aliás ambos trouxeram aquela substância em geleia, bolos e pastilhas para fumar. Dir-se-ia que tal era então uma moda entre a intelectualidade europeia, cansada que estava dos champagnes, dos charutos, dos absintos. O café ia então num crescendo. Nem Eça ficou viciado e se alguma vez ficou drogado, tal deveu-se, não tanto ao haxixe, mas aos medicamentos que, mais tarde, passou regularmente a tomar e a variar, conforme as prescrições médicas que procuravam acertar nos seus padecimentos intestinais e combatê-los, com raro sucesso ou alívio, como é sabido. Durante as dores, os crescimentos que de quando em vez o acometiam de forma insuportável, deve ter muitas vezes suspirado pelo haxixe cairota, mas creio que então este não chegava facilmente a Lisboa. Se tivesse a cannabis ali à mão, plantada no quintal, sempre poderia ter passado melhor com as suas enfermidades. Mas no Portugal de então, além do chá de tília, pouco mais havia na velha farmacopeia para aliviar as suas dores e sofrimento. Mas também não podemos agora emendar a História e o que passou, passou.
Presentemente tem-se discutido na Assembleia da República a legalização do consumo da cannabis para fins terapêuticos e não recreativos, como eles dizem, criando assim mais um muro artificial e inútil, desta vez semântico, entre o divertimento e a terapia, como se tal fosse possível. Uma boa parte da Humanidade e os pensantes de todas as épocas terão concluído que tal não o é. Ao fim e ao cabo todas as eficientes terapias para todas as nossas doenças e enfermidades, que outro objetivo terão senão pôr-nos aptos para o exercício normal da vida, o qual inclui por certo o recreio, a diversão, a convivialidade? Para que quereremos a “saúde”, ou a ausência de doenças e enfermidades, senão para viver a vida o melhor possível? Haverá alguns que ainda pensarão que o vida é, ou deve ser, fardo e sofrimento, mas suponho que os psicanalistas já os terão catalogado e, muito humanamente, proposto algumas terapias para esses infelizes, quiçá à base da atualmente discutidíssima cannabis, que para eles já tarda. Porque da auto-flagelação, ou da auto-justificação, à perseguição do bem-estar, ou pelo menos, do sossego dos outros que não estão para aí virados, vai apenas uma pequena distância de oportunidade. E todos sabemos, pelo menos pela História, o que tal significa.
            Desde tempos muito remotos que a humanidade descobriu que algumas plantas e seus derivados tinham propriedades alucinógenas, isto é, capazes de pôr os que as consumiam a ver e a sentir o banal em maior e diferente escala, ou até a ver, sentir, cheirar e usufruir daquilo que só a imaginação cria e que nunca foi real. Poderíamos aqui invocar o consumo habitual do “pão do diabo” por Jerónimo Bosch, um pão de centeio com cravagem, o LSD natural, que o levou a pintar aquelas maravilhosas alucinações que hoje os grandes museus exibem com orgulho e as leiloeiras invejam. Supomos que as polícias já o deixaram em paz e que a justiça não o quer levar a tribunal por consumo de drogas, até porque ele já morreu em 1516. Dos derivados de plantas usados para fins recreativos, ou seja, não necessários à alimentação nem à saúde, atualmente ainda se consomem legalmente quatro, embora dois deles muito perseguidos pela legislação e por um puritanismo exacerbado: referimo-nos ao vinho, uma bebida preparada a partir de uvas da Vitis vinifera fermentadas, com cerca de 11 a 13º de álcool por 100 ml, completamente perseguida em algumas sociedades pela sua capacidade de dar alegria às pessoas; o tabaco, as folhas secas da planta Nicotiana tabacum, por inalação do fumo da sua combustão, perdidos que estão no Ocidente os hábitos de o mascar e snifar (rapé); o café, uma infusão dos grãos torrados da Coffea arabica e outras plantas afins, tomado como estimulante. Por fim o cacaueiro, a Theobroma cacao, sob a forma de chocolate. Depois existem um sem número de sucedâneos de bebidas a partir de outras plantas, como a cerveja, de inalações de derivados de outras plantas, como o sagrado incenso, e de estimulantes orgânicos, como a Camellia sinensis (chá) e outras centenas ou milhares de infusões. A partir do século XIX, após a síntese química das moléculas ativas e da sua replicação artificial, o número de produtos terapêuticos e de estimulantes tornou-se exponencial e nem sempre controlado pela indústria farmacêutica, que muitas vezes vende a substância base, mas já não controla as suas combinações. Mas para os seus efeitos terá sempre um antídoto legal, de modo que o lucro está sempre garantido em todo o processo, se não à partida, de certeza à chegada, quanto mais não seja pago pelo Estado, que em última instância tem de tratar do intoxicado. E tudo isto por quê? Porque, antes de mais, de um modo geral, é bom, sabe bem, dá alguns momentos de felicidade real ou imaginária, resolve os problemas físicos e psíquicos no imediato, mesmo depois do consumidor ter abusado por excesso. A psicose de infringir a lei vigente, a ordem, o status, sempre foi um dos motores da História, que dá a sensação de se ter um pouco mais do paraíso proibido na Terra. Ora, paralelamente à descoberta das plantas estupefacientes, ou simplesmente estimulantes, também ocorreu a tentativa de apropriação dos seus paraísos pelas religiões e pelos sistemas de governação, para o darem em exclusivo aos seus crentes, aos seus fiéis, sob forma controlada e com pagamento de retorno assegurado. Ainda estamos nesse estádio e é isso que andam a fingir que discutem alguns dos nossos deputados, esquecendo que hoje somos todos, ou quase todos, drogados por drogas legais que nos mantêm a qualidade de vida.
            Refletindo sobre o mundo e os seus achaques, e tropeçando nas humanas atitudes, quer individuais quer coletivas, muitos dos escritores e outros artistas do passado e do presente conheceram diversos estupefacientes e experimentaram-nos ou consumiram-nos, como foi o caso de Eça de Queirós. Se é certo que uma boa parte das suas personagens ainda se embebeda, charuteia ou fuma cigarro, e bebe café, do seu consumo de haxixe, comprovado por, entre outros, Jaime Batalha Reis, não ficou memória literária direta. E se de tal poderá ter sucumbiu o seu companheiro de viagem, o conde de Resende, tal não poderemos afirmar, sendo certo que morreu novo e com “visões místicas” (MONCÓVIO, 2016: 25).
            Tirando o vinho, o tabaco, o café e o chocolate que consumimos são importados. Muitas das drogas legais em Portugal (fármacos e não só) são importadas. Quase todas as drogas ilegais em Portugal, à excepção da cannabis, são importadas. O controlo policial e social destas últimas falhou e continuará a falhar. Convém pois reequacionar este assunto a partir de dados humanitários e do bom senso. Está provado que não se combatem as drogas proibindo-as ou criminalizando os seus consumidores, deixando que os fornecedores se substituam em cadeia, e nas cadeias. E se os drogados são doentes, o que só será verdade a partir da evidência de efeitos nefastos e da irreversibilidade da dependência, então tratemo-los com a dignidade que nos merecem todos os outros dependentes de drogas, fármacos ou estupefacientes. Entre o consumidor compulsivo de cannabis cultivada no seu quintal e o de fármacos legais da farmácia da esquina, que venha o diabo e que escolha. Eu sei em quem voto.
            Declaração de interesses: o autor deste artigo consome moderadamente vinho, café, cacau e medicamentos legais. Não fuma, embora na juventude tenha teimado porque era proibido no liceu, sem o conseguir. É também uma prova de que a propensão para o uso imoderado do tabaco não é hereditária. Nunca consumiu cannabis ou qualquer outra droga ilegal, embora as tenha tido disponíveis no tempo da tropa em Moçambique, não por “ser melhor do que os outros”, mas porque, entre outros motivos, ter tido sempre necessidade de se manter vigilante face ao status quo circundante, e por, apesar de tudo o que tem passado, não estar descontente com a vida, não precisar de “refúgios” para além da realidade, nem querer “dar o flanco ao inimigo”, seja lá ele qual for. Conhece os sete prazeres da vida e esses lhe bastam. Tem tomado alguns fármacos legais por prescrição médica, alguns dos quais o ajudaram a superar um problema de saúde grave. Acredita na eficiência da Medicina, mas sabe que a vida não existe por receita médica, filosófica ou policial. Se a questão se pudesse pôr, nunca colaboraria em qualquer perseguição a Eça de Queirós e seus amigos por terem consumido haxixe nem, se fosse deputado, participaria nos dias de hoje na elaboração de leis obsoletas ou inúteis contra tal consumo. Deixaria a sua profilaxia para programas de educação e de reinserção social mais eficazes, concretos e humanos. Se pudesse, a todos convidaria para tentarem viver num mundo onde não se consumissem drogas dispensáveis, nem onde estas alimentam uma boa parte da economia paralela, onde ombreiam com os tráficos de armas e de pessoas.
Já li o romance A Coca de J. Rentes de Carvalho e gostei da abordagem do autor. Creio que, para além do seu grande valor como obra literária, ajuda a perceber o fenómeno entre nós.

J. A. Gonçalves Guimarães
Mesário-mor da Confraria

Livros e revistas

Revista de Portugal
            A Revista de Portugal n. º 14, publicada no passado dia 25 de novembro, encontra-se digitalizada e disponível em wwwqueirosiana.pt a partir de hoje. Embora a sua publicação habitual vá continuar a ser feita em papel, é intenção da direção disponibilizar todos os números já publicados neste sítio.

            Encontra-se em distribuição o n.º 85 do Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia referente ao mês de dezembro de 2017, com artigos de, entre outros, GUIMARÃES, J. A. Gonçalves – Biografias de Mafamudenses ilustres; MONCÓVIO, Susana – Adelaide Lucinda Fontes (1871-1951) e Emília Ernestina da Silva (1869-1952): a formação artística das senhoras Teixeira Lopes; e OLIVEIRA, Nuno Gomes – Viveiros da Quinta da Telheira, Santo Ovídio. A biodiversidade perdida.

Palestras, cursos, congressos e outros eventos
Francisco Ribeiro da Silva e o Foral de 1518
Comemorações do Foral de Gaia de 1518
            No passado dia 19 de Janeiro tiveram início as comemorações oficiais dos 500 anos do Foral manuelino de Vila Nova de Gaia com uma sessão solene no Arquivo Municipal presidida pelo Prof. Doutor Eduardo Vitor Rodrigues, presidente da câmara, ladeado pelos vereadores Eng.ª Paula Carvalhal e Dr. Manuel Monteiro. Foi orador o Professor Doutor Francisco Ribeiro da Silva, ex-professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que dissertou sobre o conteúdo do documento no contexto da reforma manuelina. A sessão foi abrilhantada com a atuação de um grupo de guitarra clássica do Conservatório de Música de Gaia que tocou peças da época. Seguiu-se a abertura de uma exposição evocativa, a qual tinha como ponto central o original do Foral, bem assim como outros objetos da época ou a ela alusivos. Entre muitas das individualidades presentes encontrava-se D. Henrique de Cernache, conde de Campo Bello, descendente dos antigos senhores de Gaia-a-Grande e de Álvaro Anes e de Diogo Leite referidos neste documento régio.
            As comemorações prosseguirão com um exposição de Artes Plásticas inspiradas no Foral, organizada pela associação Artistas de Gaia e que abrirá no dia 24 de março, e pela realização de um cortejo cívico que terminará com uma recriação histórica e pelo lançamento da edição fac-similada do Foral, no próximo dia 30 de junho.

25 anos da Escola Diogo de Macedo
            Com um vasto programa de vinte e cinco eventos apresentado por Manuel Filipe de Sousa, iniciaram-se no passado dia 19 de janeiro com um Concerto de Abertura pelo Conservatório de Música do Porto realizado na Igreja de Crestuma, Vila Nova de Gaia, completamente cheia, as comemorações dos 25 anos da AEDMO – Agrupamento de Escolas Diogo de Macedo. Os estantes eventos, que incluem exposições, conferências e edição do jornal Face ao Douro, decorrerão ao longo do ano com a colaboração de diversas personalidades e instituições.

Últimas Quintas do Mês
Noje, no Solar Condes de Resende, prosseguindo o programa das palestras das últimas quintas-feiras do mês, pelas 21,30 horas, J. A. Gonçalves Guimarães falará sob o tema «Toponímia gaiense: introdução ao seu estudo» em que abordará, entre outros, os topónimos do Foral quinhentista. No próximo mês de fevereiro, dia 22, no mesmo local e à mesma hora o mesmo investigador falará sobre «Portucale entre suevos e visigodos».

Curso de Património Cultural de Gaia
             Prossegue no próximo sábado no Solar Condes de Resende o curso sobre o Património Cultural de Gaia, com uma aula sobre o Património Institucional pelo Prof. Francisco Barbosa da Costa. Em fevereiro dia 3 será a vez do Professor Doutor Gonçalo de Vasconcelos e Sousa sobre Património Humano – Personalidades e no dia 17 sobre Património Edificado pelo Prof. Doutor Nuno Resende.

Depósitos e doações
            Pelo Dr. Marcus Vinícius Cocentino Fernandes, médico radiologista, foram entregues à Confraria Queirosiana mais 20 livros e uma fotografia do espólio da Dr.ª Júlia Cunha, a juntar aos 89 itens já doados desta discípula dileta de Teófilo Braga, o qual tem vindo a ser estudado pelo Prof. Doutor José António Martin Moreno Afonso da Universidade do Minho, contando já com um primeiro artigo intitulado «Memórias dos anos de formação de uma professora portuense na década de 1920» apresentado no Congresso Internacional “O Tempo dos Professores”, que decorreu no Porto entre 28 e 30 de setembro de 2017, organizado pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
S. Gonçalo, séc. XVIII; propriedade da Associação Os Mareantes do Rio Douro.

A propósito da romaria de S. Gonçalo que decorreu em Gaia no passado dia 14 de janeiro, a Associação Os Mareantes do Rio Douro depositou no Solar Condes de Resende, para estar exposta, uma imagem do século XVIII daquele taumaturgo amarantino medieval que antigamente era usada no seu cortejo votivo até à igreja de Mafamude, a qual, entretanto foi substituída por uma outra mais recente.
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Eça & Outras, III.ª série, n.º 110 – quinta-feira, 25 de janeiro de 2018; propriedade dos Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; C.te. n.º 506285685; NIB: 0018000055365059001540; IBAN: PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com; www.queirosiana.pt; confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J. A. Gonçalves Guimarães (TE-638); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia Cabral; fotografia: Carlos Sousa e Susana Guimarães.