sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Eça & Outras, sábado, 25 de janeiro de 2014

Da tolerância

Escreveu um dia Eça de Queirós «O homem moderno, esse, mesmo nas alturas sociais é um pobre Adão achatado entre as duas páginas dum código» (A Correspondência de Fradique Mendes). E esta verdade é universal.
Esse código tem vários versões e patamares e é através da observância dos seus princípios, ainda que temporária e aparente, que as multinacionais, as nações, as religiões, os sistemas políticos, os clubes de futebol, os países, as corporações, as instituições, os meus amigos e vizinhos se cumprimentam diariamente e se impedem de se matarem uns aos outros, que motivos para tal não lhes faltam: territórios ocupados onde antes estavam outros a viver a sua vida; destruição da agricultura, da indústria e do comércio locais impondo produtos de duvidosa qualidade e já armadilhados para criarem dependências pagas no consumidor; particularização de um deus para cada nação dito melhor que o da nação ao lado; implantação de sistemas de poder pouco transparentes e contrários aos princípios que apregoam; estratificação social baseada nos privilégios adquiridos e mantidos; imobilismo profissional dos assalariados, desemprego e inação social; problemática distribuição da riqueza e da solidariedade, do alimento quotidiano e do computador; existência de forças militares e policiais sem objetivos claros e definidos; crença infinita e primária na tecnologia e nos media, e tantas coisas mais.
Tudo isto desencadeia angústias e maus humores, zangas, brigas, tumultos, atentados, massacres, invasões, guerras e todo o calvário de desgraças que lhes anda associado desde que o mundo é mundo. E tudo isso escusado.
Sendo Português, por geografia, cultura, circunstância e convicção, trago comigo uma boa dose de mitos de estimação que me confortam o ego, me iluminam a existência e sustentam a minha pequena contribuição para o futuro do mundo e do meu país, dos meus concidadãos, parentes, amigos, mas nunca contra o homo universalis, que seja ele quem for, tem também as suas crenças, por geografias e circunstâncias que em grande parte lhe são alheias, pois quando nasceu já elas existiam, e que não são de modo algum superiores ou inferiores às minhas. São apenas aparentemente diferentes, pois para além da sua casca regional e cultural, são antropologicamente iguais. Por isso a longa história da humanidade tem desenvolvido o mais natural, mas também o mais intelectual sentimento, que é o da tolerância, o grande antídoto internacional contra o sofrimento, que de modo algum se reduz à definição de Locke: «Parar de combater o que não se pode mudar», até porque a mudança é intrínseca ao ser humano.
Mas não é a tolerância uma atitude fácil ou espontânea. Vários outros pensadores tentaram teorizá-la para propor a sua universalidade, mas ela esbarra sempre nos mesmos muros do preconceito: o meu povo é melhor do que o teu; a multinacional X adquiriu direitos que não quer repartir; a minha democracia é mais legítima do que a tua monarquia; a minha religião é mais verdadeira do que a tua crença; a minha guerra é mais justa do que a tua defesa; os da tua tribo são gente de primeira e os da minha (pensarás tu, ainda que em segredo) não passam do rebotalho da humanidade, os bárbaros, os gentios; a minha profissão é mais importante do que a tua; o teu porsche mais aceitável que o meu autocarro; o teu cargo político mais respeitável do que o meu voto. Enfim, achas que só podes viver confortável se puderes determinar o conforto a que os outros têm direito. Tudo isto é intolerância política, económica, cultural, social, em suma, humana.
Na sua aplicação, a tolerância só funciona enquanto a outro está disposto ao diálogo, ou seja, enquanto também está disposto a ser, ainda que temporariamente, tolerante. Mas como a sopa quotidiana e os mais elementares direitos humanos não podem esperar, quantas vezes o contato com o outro é estabelecido à força, tentando forçar o diálogo. Mas tal não é tolerância, e dá um poder extra aos políticos, exércitos e policias que eles irão usar, por muito tempo, em proveito próprio e de quem lhes paga.
Outra armadilha mental pespegada ao cidadão pelos intolerantes é o fazerem-lhe crer que ele carrega direitos ou culpas ancestrais: no primeiro caso isso sanciona situações no mínimo questionáveis; no segundo amolece-lhe o raciocínio para que ache “normal” o permitir que os que falam em nome dos perseguidos de ontem sejam os perseguidores de hoje. Meus senhores e senhoras, ou vice-versa por causa da igualdade do género: eu, e com certeza muitos dos que me leem, nunca atiramos cristãos às feras, nem sequer a seu pedido; nunca perseguimos quaisquer crentes, ateus ou livres-pensadores, judeus, ciganos ou bruxas, ou qualquer indivíduo portador de particularismo biológico, físico, cultural ou social; nunca massacramos ameríndios, africanos, hawaianos ou arménios; não destruímos paisagens naturais ou espécies protegidas; não apoiamos Estaline, Mussolini, Salazar, Franco, Hitler, Pol Pot e outros representantes do povo que fizeram duas guerras mundiais e outras regionais no século passado. Por esses, e outros tenebrosos acontecimentos, não somos nem nunca fomos responsáveis, nem por eles carregamos culpas e muito menos direitos. Mas estamos atentos e intervenientes para que se não repitam no nosso tempo de responsabilidade, ou seja só enquanto formos vivos.
Vamos pois falando de tolerância, cultivando-a sempre que o outro também esteja disposto a praticá-la, pois de outro modo não passará de um diálogo de surdos.
A arrogância dos néscios, daqueles que falam como se fossem imperadores de um império maldito para durar por milénios, mas que na realidade não passam de insuportáveis convictos de uma pretensa superioridade humanamente ofensiva, que fiquem com ela para seu consumo interno e das suas crenças tribais, que nós outros, simples humanos, embora as conheçamos e respeitemos, não queremos partilhar.
E se é certo que no mundo não faltam grandes situações de intolerância, a irmã mais velha da fome e da miséria, também por cá à nossa porta as vamos tendo, na política, na religião, no futebol, na convivência social, quantas vezes perpetradas pelos arrogantes com convicções trazidas da barbárie antiga, que pelo facto de ser antiga não se tornou por isso nem mais respeitável nem mais aceitável. Resta-nos enfrentar este permanente desafio à nossa tolerância continuando a exercê-la todos os dias através do estudo sem preconceitos e do diálogo permanente com todos os outros, mesmo que eles o não queiram, berrando-lhes, se tal for necessário, que o respeito tem de ser mútuo.

J. A. Gonçalves Guimarães
Mesário mor da Confraria

Livros e textos

Através da Parceria A. M. Pereira, A. Campos Matos acaba de publicar um novo livro intitulado “Eça de Queiroz Correspondência (Adenda)” com quinze cartas inéditas do escritor que não constam na sua obra em dois volumes impressa em 2008 com aquele título, atingindo-se agora o número de 913 cartas publicadas, não sendo improvável que ainda algumas outras venham a aparecer. Por outro lado é incompreensível que alguns estudiosos e comentadores de Eça continuem a usar coletâneas epistolares antigas como fonte dos seus trabalhos, quando têm estas edições recentes e completas. Na primeira destas cartas inéditas agora publicadas Eça escreveu «Como V. Ex.ª sabe sempre desejei sair de Portugal…»


Eça de Queirós na Word Press

Encontra-se disponível em queirosiana.wordpress.com o blogue “Eça de Queirós. Investigação, debate e ensino sobre Eça de Queirós”, postado por Carlos Reis, professor catedrático da Universidade de Coimbra e especialista na obra queirosiana e da sua contemporaneidade. Para além de textos e imagens sobre grandes temas relacionados com a vida e obra do escritor, o blogue apresenta texto e fotografia do colóquio "Eça de Queiroz no Contexto da História dos Media” realizado em Roma e Viterbo entre 4 e 6 de Dezembro passado, e que envolveu investigadores das universidades do Minho, de Coimbra e Lisboa, entre eles Carlos Reis, Ana Teresa Peixinho e Mário Vieira de Carvalho. Este blogue dá também destaque à última edição da Revista de Portugal, nova série, editada pela Confraria Queirosiana.

Condecorações

No Solar Condes de Resende estão expostas as insígnias de Comendador da Ordem do Infante Dom Henrique, formadas por fita tricolor com a cruz pátea pendente e a placa prateada, acompanhadas do respetivo diploma de concessão, a mesma Ordem recentemente atribuída ao futebolista Ronaldo no grau de Grande Oficial. Aquelas pertencem ao escritor José Rentes de Carvalho e foram-lhe atribuídas a 10 de Junho de 1991 pelo Presidente da República Doutor Mário Soares, pela sua contribuição para a divulgação da Língua e Literatura portuguesas na Holanda e em especial a vida e obra de Eça de Queirós, estando incluídas no seu espólio pessoal à guarda dos Amigos do Solar Condes de Resende – Confraria-Queirosiana.
Obviamente que o escritor não ganhou nenhuma bola de ouro, mas o seu pensamento e obra brilham por certo na Cultura Portuguesa Contemporânea da qual, mesmo distante, nunca esteve off side.

Cursos e palestras
Prossegue no Solar Condes de Resende o curso sobre História Empresarial e Institucional. Assim, no dia 1 de fevereiro J. A. Gonçalves Guimarães falará sobre “ O Grupo Salvador Caetano” e no dia 15 Joel Cleto sobre “A Indústria Conserveira em Matosinhos”.
No dia 20, no ciclo de palestras das quintas-feiras, pelas 21,30, Licínio Santos falará sobre “ As origens do Desporto em Vila Nova de Gaia”, sendo esta última de entrada livre.
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Eça & Outras, IIIª. Série, n.º 65 – sábado, 25 de Janeiro de 2014
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