quinta-feira, 25 de junho de 2020

Eça & Outras, quinta-feira, 25 de junho de 2020

Museus como penitenciárias da História

         As estátuas, como arte pública, não nascem nas praças nem nos jardins das cidades e vilas. Se estão lá é porque alguém as mandou aí colocar. Antes disso já terão percorrido um longo caminho, que importa conhecer, entre a ideia e a inauguração. Podem ter sido a oferta da bizarria pessoal de um benemérito, mas em todo o caso com a aprovação ativa ou passiva da comunidade, da autarquia ou de um governo. Não, as estátuas não têm vida própria, nem vão sozinhas para o pedestal.

Nestes dias de pânico muita gente se interroga sobre a atual onda de destruição ou “correção” da mensagem das estátuas. Mas, não só o fenómeno não é novo, como há exemplos recentes que não incomodaram assim tanto nem causaram tantos indignados. Para não recuar mais na História recente, vai para 20 anos que os "bem pensantes" (aqueles que estão sempre de acordo com a corrente dominante), que agora choram lágrimas de crocodilo pela destruição ou vandalização de algumas estátuas, assistiram impávidos e serenos à destruição de outras, e de outros bens culturais do melhor que havia, e também à sua roubalheira no Iraque, promovidas por um exército internacional patrocinado por um chefe de estado chamado George Bush, mancomunado com mais alguns outros governantes, e "ninguém" se incomodou com isso. É que nessa época não foram os espoliados da Terra, nem as vítimas centenárias do racismo, da descriminação e da perseguição, nem os indignados do momento, nem os jovens irreverentes, nem os oportunistas, nem os provocadores, nem os iconoclastas que tal fizeram. Foi tudo "gente fina", engravatados nas embaixadas e cimeiras e fardados no terreno, em defesa dos "valores ocidentais", que pelos vistos, e quando lhes convêm, também são a favor da destruição ou vandalização de estátuas e da roubalheira de bens culturais, desde que tal não seja feito por pretos, esquerdistas, ou outros minoritários quaisquer, que, quando damos por ela, são milhões em todo o mundo, mas que não têm “autorização” para tal. As estátuas erguidas não foram feitas por eles nem para eles.

         Sempre houve apeamento de estátuas quando as civilizações mudam. Mesmo entre nós, já temos pouquíssimos guerreiros galaico-lusitanos à entrada das povoações, substituídos que foram por imperadores romanos, depois por reis cristãos, depois por “marqueses de pombal”, “infantes d. henrique”, navegadores vários, santos diversos e recentemente grande cópia de “senhoras de fátima” nuns cúbicos pagodes espalhados pelo país por tudo quanto é aldeia. Mais recentemente as autarquias têm privilegiado os ilustres desconhecidos locais, ou os “monumentos decorativos”, muito mais “consensuais”, as mais das vezes sem qualquer conteúdo simbólico e muito menos oficina: se em granito ou mármore, uns calhaus; se em liga metálica, sucatas adiadas; se em materiais leves, metáforas temporárias a “E Tudo o Vento Levou”. Também sempre houve estátuas que o não chegaram a ser: em Moatize, Moçambique, dos anos setenta passados ficou um pedestal na ponte de Tete à espera da nunca chegada estátua de Marcelo Caetano, conhecido político adepto de pontes que não levavam a lado nenhum. Mas também pelo país fora temos algumas estátuas com «tom baço e pálido de uma vela de estearina colossal e apagada» (Eça de Queirós, O Primo Basílio) como a de D. Pedro IV em Lisboa, que na fundição começou por ser Maximiliano do México e que alguns guias de tuc-tuc do presente dizem aos turistas franceses ser a de Napoleão!

Mesmo em nossas casas temos estatuetas que já foram apeadas. Em vez do oratório da avó com o seu “santo onofre” e o seu “santo padre cruz”, há quem tenha em étagères, ou semeadas pelas estantes dos livros, representações de “s. salazar”, “s. lenine”, “s. buda”, “s. moisézinho” ou “santa iemanjá”. Os mais eruditos “s. luís de camões”, “s. maozedong” ou aquela jovem grega deficiente que dá pelo nome de “s. vénus de milo”. Estranha “religião” esta, a da Cultura, muito dada a incongruências, e que em nome da sensibilidade e da devoção quantas vezes abdica de análises mais exatas e descomprometidas ou simplesmente se esquece de apontar que “o rei vai nu”.

         Os velhos tiranos e os velhos mitos representados pela Arte, apesar das mudanças, e para além delas, continuam expostos nos museus. E se aí temos estátuas de Nero, sabendo-se menos mal quem foi o retratado, ou de Calígula, também podemos ter a de um negreiro ou de um colonialista qualquer com um cadastro carregado de crimes contra a Humanidade. Talvez por isso até se possa vir a teorizar uma nova virtualidade para os museus, que nestes tempos as demandam aflitos com a drástica diminuição de visitantes, como uma reflexão sobre a existência destas instituições como prisões póstumas ou penitenciárias da História onde se recolhem os facínoras em estátua ou busto, em dado tempo apeados por multidões em fúria, ou simplesmente substituídos por actualizações ideológicas, como desde os anos noventa passados aconteceu nos países do Leste europeu. Quantos “s. lenines” e “s. estalines” vandalizados ou apeados!

         Ao contrário do que anda para aí escrito, a destruição de estátuas, ou a sua vandalização, não são pois apagamentos da História ou da memória, mas sim a sua questionação. E a História não é o cemitério da Humanidade, mas sim uma ciência viva e constantemente em revisão. Por isso os historiadores sabem que o povo, que lá vai sobrevivendo de mudança em mudança, é muito mais eterno do que as estátuas que se vão erguendo e que apenas se mantêm no pedestal enquanto não muda a civilização que representam e que as incensa, quantas vezes para diluir o cheiro a sangue que muitas delas ainda recordam.

Apesar de tudo isto alguma sorte têm os escultores que as esculpem ou modelam. Para além de tal lhes ter assegurado em vivos o pão da profissão, quantas vezes, séculos depois, ainda lhes arrecadam as estátuas nos museus onde as vamos visitar. É aí que muitas vezes, na admiração pela mestria do artista, esquecemos por momentos as desgraças da condição humana que tantas delas representam, ficando-nos pelas mais inócuas divagações da História da Arte, o seu estilo, volumetrias e outras mais valias artísticas.

Por formação, por profissão, por convicção, e até por respeito para com os seus autores (mas nem sempre para com os promotores e os homenageados) sou contra o apear de estátuas ou a sua vandalização. De todas e de qualquer uma delas, até porque sempre podem ser usadas para pedagogicamente servirem de tema para uma boa lição de História. Mas não posso ignorar que sempre houve apeamento de estátuas. nem deixar de procurar responder às interrogações sobre os seus porquês. E bem podem crer que nestes atos a que agora assistimos bem vai a mudança da nossa civilização.

 

J. A. Gonçalves Guimarães

Mesário-mor da Confraria Queirosiana

 

As Artes Entre As Letras

 


Como indicamos no número anterior, o jornal As Artes Entre As Letras publicado no Porto completou 11 anos de existência, nas atuais condições sanitárias sem a habitual sessão comemorativa, mas com um número especial (n.º 267 de 27 de maio) sob o lema «A Cultura como Substantivo». Para além dos muitos colaboradores habituais, destaque para o editorial “Entre Sentidos” da sua directora, Nassalete Miranda, que nos fala do trajeto percorrido desde 22 de maio de 2009 na interpretação da Cultura, que continua a desejar coletivo, livre, tolerante unificador, resistente e afetivo. Guilherme de Oliveira Martins escreveu “Contra Ventos e Marés”, dissertando sobe a resistência desta publicação à destruição da Cultura e a oportunidade que a presente pandemia nos dá para refletirmos sobre o que fazer para corrigir os erros globais de um passado muito recente. Na página 9, o texto “Não Quero a Liberdade das Gaivotas” de J. A. Gonçalves Guimarães na presença mensal da Confraria Queirosiana. E muitos outros. Entretanto o n.º 268, de 10 de junho regressou à normalidade das edições também em papel, dedicado ao «Dia de Camões. A Língua Portuguesa».

 

Livros e Autores

 

         Continua em publicação pela Imprensa Nacional a coleção «Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós», dirigida e coordenada pelo Professor Doutor Carlos Reis, que se propõe disponibilizar aos estudiosos e aos leitores em geral os textos de Eça expurgados de acrescentos e erros que lhe são alheios, embora divulgando as diferentes versões e correcções com que o próprio escritor os trabalhou. O seu lema poderia ser “A Eça o que é de Eça”, tarefa difícil e não isenta de percalços que se adivinham, mas que se podem tentar contornar criticamente. Acaba de ser publicado o 18.º volume desta colecção, intitulado Textos de Imprensa II (do Distrito de Évora), organizado por Ana Teresa Peixinho, Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o qual apresenta os textos do escritor publicados no bissemanário Distrito de Évora aquando da sua estadia na capital alentejana a dirigir este periódico em 1867, aos vinte e dois anos de idade, durante sete meses. Apesar do regionalismo do meio de publicação, estes textos abordam não apenas questões locais, mas também nacionais e internacionais, quantas vezes com uma ousadia de opiniões e concepções da vida e da sociedade que ainda hoje nos surpreenderão.


ASCR - Confraria Queirosiana

         No próximo dia 30 de junho, a partir das 18 horas, decorrerá no Solar Condes de Resende a assembleia geral eleitoral dos sócios da associação Amigos do Solar Condes de Resende – Confraria Queirosiana para eleição dos corpos gerentes para o mandato de 2020 a 2024, a que concorre uma lista proposta pela anterior direcção. Pelas 21 horas no mesmo dia e local decorrerá a assembleia geral ordinária dos sócios da mesma associação para a apresentação do Relatório e Contas referente ao ano de 2019, a qual, devido às condições sanitárias do país, ainda não tinha sido realizada.

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Eça & Outras, III.ª série, n.º 142, quinta-feira, 25 de junho de 2020; propriedade dos Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; C.te n.º 506285685; NIB: 0018000055365059001540; IBAN: PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com; www.queirosiana.pt; confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J. A. Gonçalves Guimarães (TE-164 A); redação: Fátima Teixeira; inserção: Licínio Santos.