Da tolerância
Escreveu
um dia Eça de Queirós «O homem moderno, esse, mesmo nas alturas sociais é um
pobre Adão achatado entre as duas páginas dum código» (A Correspondência de Fradique Mendes). E esta verdade é universal.
Esse
código tem vários versões e patamares e é através da observância dos seus
princípios, ainda que temporária e aparente, que as multinacionais, as nações, as
religiões, os sistemas políticos, os clubes de futebol, os países, as corporações,
as instituições, os meus amigos e vizinhos se cumprimentam diariamente e se
impedem de se matarem uns aos outros, que motivos para tal não lhes faltam:
territórios ocupados onde antes estavam outros a viver a sua vida; destruição
da agricultura, da indústria e do comércio locais impondo produtos de duvidosa
qualidade e já armadilhados para criarem dependências pagas no consumidor;
particularização de um deus para cada nação dito melhor que o da nação ao lado;
implantação de sistemas de poder pouco transparentes e contrários aos
princípios que apregoam; estratificação social baseada nos privilégios adquiridos
e mantidos; imobilismo profissional dos assalariados, desemprego e inação
social; problemática distribuição da riqueza e da solidariedade, do alimento
quotidiano e do computador; existência de forças militares e policiais sem
objetivos claros e definidos; crença infinita e primária na tecnologia e nos
media, e tantas coisas mais.
Tudo
isto desencadeia angústias e maus humores, zangas, brigas, tumultos, atentados,
massacres, invasões, guerras e todo o calvário de desgraças que lhes anda
associado desde que o mundo é mundo. E tudo isso escusado.
Sendo
Português, por geografia, cultura, circunstância e convicção, trago comigo uma
boa dose de mitos de estimação que me confortam o ego, me iluminam a existência
e sustentam a minha pequena contribuição para o futuro do mundo e do meu país,
dos meus concidadãos, parentes, amigos, mas nunca contra o homo universalis, que seja ele quem for, tem também as suas
crenças, por geografias e circunstâncias que em grande parte lhe são alheias,
pois quando nasceu já elas existiam, e que não são de modo algum superiores ou
inferiores às minhas. São apenas aparentemente diferentes, pois para além da
sua casca regional e cultural, são antropologicamente iguais. Por isso a longa
história da humanidade tem desenvolvido o mais natural, mas também o mais
intelectual sentimento, que é o da tolerância, o grande antídoto internacional
contra o sofrimento, que de modo algum se reduz à definição de Locke: «Parar de
combater o que não se pode mudar», até porque a mudança é intrínseca ao ser
humano.
Mas
não é a tolerância uma atitude fácil ou espontânea. Vários outros pensadores
tentaram teorizá-la para propor a sua universalidade, mas ela esbarra sempre
nos mesmos muros do preconceito: o meu povo é melhor do que o teu; a
multinacional X adquiriu direitos que não quer repartir; a minha democracia é mais
legítima do que a tua monarquia; a minha religião é mais verdadeira do que a
tua crença; a minha guerra é mais justa do que a tua defesa; os da tua tribo
são gente de primeira e os da minha (pensarás tu, ainda que em segredo) não
passam do rebotalho da humanidade, os bárbaros, os gentios; a minha profissão é
mais importante do que a tua; o teu porsche mais aceitável que o meu autocarro;
o teu cargo político mais respeitável do que o meu voto. Enfim, achas que só
podes viver confortável se puderes determinar o conforto a que os outros têm
direito. Tudo isto é intolerância política, económica, cultural, social, em
suma, humana.
Na
sua aplicação, a tolerância só funciona enquanto a outro está disposto ao
diálogo, ou seja, enquanto também está disposto a ser, ainda que
temporariamente, tolerante. Mas como a sopa quotidiana e os mais elementares
direitos humanos não podem esperar, quantas vezes o contato com o outro é
estabelecido à força, tentando forçar o diálogo. Mas tal não é tolerância, e dá
um poder extra aos políticos, exércitos e policias que eles irão usar, por
muito tempo, em proveito próprio e de quem lhes paga.
Outra
armadilha mental pespegada ao cidadão pelos intolerantes é o fazerem-lhe crer
que ele carrega direitos ou culpas ancestrais: no primeiro caso isso sanciona
situações no mínimo questionáveis; no segundo amolece-lhe o raciocínio para que
ache “normal” o permitir que os que falam em nome dos perseguidos de ontem
sejam os perseguidores de hoje. Meus senhores e senhoras, ou vice-versa por
causa da igualdade do género: eu, e com certeza muitos dos que me leem, nunca
atiramos cristãos às feras, nem sequer a seu pedido; nunca perseguimos
quaisquer crentes, ateus ou livres-pensadores, judeus, ciganos ou bruxas, ou
qualquer indivíduo portador de particularismo biológico, físico, cultural ou
social; nunca massacramos ameríndios, africanos, hawaianos ou arménios; não
destruímos paisagens naturais ou espécies protegidas; não apoiamos Estaline,
Mussolini, Salazar, Franco, Hitler, Pol Pot e outros representantes do povo que
fizeram duas guerras mundiais e outras regionais no século passado. Por esses,
e outros tenebrosos acontecimentos, não somos nem nunca fomos responsáveis, nem
por eles carregamos culpas e muito menos direitos. Mas estamos atentos e
intervenientes para que se não repitam no nosso tempo de responsabilidade, ou
seja só enquanto formos vivos.
Vamos
pois falando de tolerância, cultivando-a sempre que o outro também esteja
disposto a praticá-la, pois de outro modo não passará de um diálogo de surdos.
A
arrogância dos néscios, daqueles que falam como se fossem imperadores de um império
maldito para durar por milénios, mas que na realidade não passam de
insuportáveis convictos de uma pretensa superioridade humanamente ofensiva, que
fiquem com ela para seu consumo interno e das suas crenças tribais, que nós
outros, simples humanos, embora as conheçamos e respeitemos, não queremos
partilhar.
E
se é certo que no mundo não faltam grandes situações de intolerância, a irmã
mais velha da fome e da miséria, também por cá à nossa porta as vamos tendo, na
política, na religião, no futebol, na convivência social, quantas vezes perpetradas
pelos arrogantes com convicções trazidas da barbárie antiga, que pelo facto de
ser antiga não se tornou por isso nem mais respeitável nem mais aceitável.
Resta-nos enfrentar este permanente desafio à nossa tolerância continuando a
exercê-la todos os dias através do estudo sem preconceitos e do diálogo
permanente com todos os outros, mesmo que eles o não queiram, berrando-lhes, se
tal for necessário, que o respeito tem de ser mútuo.
J.
A. Gonçalves Guimarães
Mesário
mor da Confraria
Livros e textos
Através
da Parceria A. M. Pereira, A. Campos Matos acaba de publicar um novo livro
intitulado “Eça de Queiroz Correspondência (Adenda)” com quinze cartas inéditas
do escritor que não constam na sua obra em dois volumes impressa em 2008 com
aquele título, atingindo-se agora o número de 913 cartas publicadas, não sendo
improvável que ainda algumas outras venham a aparecer. Por outro lado é
incompreensível que alguns estudiosos e comentadores de Eça continuem a usar
coletâneas epistolares antigas como fonte dos seus trabalhos, quando têm estas
edições recentes e completas. Na primeira destas cartas inéditas agora publicadas
Eça escreveu «Como V. Ex.ª sabe sempre desejei sair de Portugal…»
Eça
de Queirós na Word Press
Encontra-se
disponível em queirosiana.wordpress.com o blogue “Eça de Queirós. Investigação,
debate e ensino sobre Eça de Queirós”, postado por Carlos Reis, professor
catedrático da Universidade de Coimbra e especialista na obra queirosiana e da
sua contemporaneidade. Para além de textos e imagens sobre grandes temas
relacionados com a vida e obra do escritor, o blogue apresenta texto e
fotografia do colóquio "Eça de Queiroz no Contexto da História dos Media”
realizado em Roma e Viterbo entre 4 e 6 de Dezembro passado, e que envolveu
investigadores das universidades do Minho, de Coimbra e Lisboa, entre eles
Carlos Reis, Ana Teresa Peixinho e Mário Vieira de Carvalho. Este blogue dá
também destaque à última edição da Revista de Portugal, nova série, editada
pela Confraria Queirosiana.
Condecorações
No
Solar Condes de Resende estão expostas as insígnias de Comendador da Ordem do
Infante Dom Henrique, formadas por fita tricolor com a cruz pátea pendente e a
placa prateada, acompanhadas do respetivo diploma de concessão, a mesma Ordem
recentemente atribuída ao futebolista Ronaldo no grau de Grande Oficial.
Aquelas pertencem ao escritor José Rentes de Carvalho e foram-lhe atribuídas a
10 de Junho de 1991 pelo Presidente da República Doutor Mário Soares, pela sua
contribuição para a divulgação da Língua e Literatura portuguesas na Holanda e
em especial a vida e obra de Eça de Queirós, estando incluídas no seu espólio
pessoal à guarda dos Amigos do Solar Condes de Resende – Confraria-Queirosiana.
Obviamente
que o escritor não ganhou nenhuma bola de ouro, mas o seu pensamento e obra
brilham por certo na Cultura Portuguesa Contemporânea da qual, mesmo distante,
nunca esteve off side.
Cursos e
palestras
Prossegue
no Solar Condes de Resende o curso sobre História Empresarial e Institucional.
Assim, no dia 1 de fevereiro J. A. Gonçalves Guimarães falará sobre “ O Grupo
Salvador Caetano” e no dia 15 Joel Cleto sobre “A Indústria Conserveira em
Matosinhos”.
No
dia 20, no ciclo de palestras das quintas-feiras, pelas 21,30, Licínio Santos
falará sobre “ As origens do Desporto em Vila Nova de Gaia”, sendo esta última
de entrada livre.
_______________________
Eça
& Outras, IIIª. Série, n.º 65 – sábado, 25 de Janeiro de 2014
Cte. n.º 506285685 ; NIB: 001800005536505900154
IBAN:
PT50001800005536505900154; email:queirosiana@gmail.com; www .queirosiana.pt;
confrariaqueirosiana.blospot.pt; eca-e-outras .blogspot .pt;
vinhosdeeca.blogspot.pt; academiaecadequeiros.blogspot.pt; coordenação da
página: J. A. Gonçalves Guimarães (TE-638); redação: Fátima Teixeira; inserção:
Amélia Cabral.
Sem comentários:
Enviar um comentário