sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Eça & Outras

A escrita da História

         Mas então só os historiadores podem escrever sobre História? Numa sociedade livre e democrática não pode qualquer cidadão escrever sobre o que lhe dá na real gana? Há censuras, restrições corporativas? Depende. Experimentem fazer essas mesmas perguntas ou colocar essas mesmas questões mudando historiador para jurista sobre Direito, médico sobre Medicina, engenheiro sobre Engenharia, arquitecto sobre Arquitetura e terão logo metade da questão aclarada e a resposta dada. Mas sem esquecerem que existe a História do Direito, a História da Medicina, a História da Engenharia, a História da Arquitetura (ou, mais ampla, a da Arte). Aí responderia que talvez seja melhor os profissionais encontrarem-se e trabalharem em colaboração, unindo saberes e metodologias. Uma coisa é escrever sobre uma ciência humana, outra escrever versos, desabafos, opiniões, crónicas, memórias. Ou glosar ciência alheia em textos síntese.

          Mas isso é na estrita esfera dos saberes próprios de cada ciência. E na divulgação, na decomposição das grandes questões em explicações acessíveis aos não especialistas, aos alunos das escolas, ao público em gertida, achar-se que se podem alargar os furos do cinto do rigor quando se trata de divulgaral, podem outros, que não os historiadores, escrever sobre História? Direi que depende dos objetivos e da honestidade das metodologias a aplicar. Não é lícito, logo à pação e que se pode atrair o público misturando factos históricos com invenções ou delírios ficcionais. Quando tal acontece, se foi feito por historiadores profissionais, devem os mesmos ser corrigidos pelos seus pares; se tal for feito por outros profissionais, há que criticá-los na praça pública e se os seus relatos deliberadamente falaciosos estiverem ao serviço de entidades que com isso ganham dinheiro, há que denunciá-los às entidades de defesa do consumidor por estarem a vender um “ bacalhau podre” como se fora de boa qualidade. Se tal acontece num supermercado com os produtos alimentares, porque não pode acontecer com os “alimentos do espírito” que tão importantes são para a coesão das comunidades?

Podem (ou devem) então outros profissionais, nomeadamente os jornalistas, escrever sobre História? Depende, e logo em primeiro lugar, se estão ou não a roubar o trabalho aos historiadores. Nesse caso não podem nem devem. Mas o melhor é analisar dois exemplos relativamente recentes, um aceitável e outro mau.

Como se lembram, no ano 2000 voltaram à conversa as velhas superstições milenaristas, que antes de mais se esquecem que a “era cristã” nem sequer é universal. Dois jornalistas ingleses, Robert Lacey (formado também em História) e Danny Danziger, cavalgando a onda do interesse do público pelo assunto, escreveram o livro Ano 1000. Como se vivia na viragem do primeiro milénio, editado em Portugal pela Campo das Letras. Para tal serviram-se de um manuscrito, o Calendário Juliano de Trabalhos da Catedral da Cantuária, escrito por volta de 1020, no qual cada folha foi adornada com preciosos desenhos referentes às atividades próprias de cada mês. E a partir daí compuseram uma narrativa jornalística da época, mas muito bem fundamentada em excelente bibliografia historiográfica (que divulgam em notas e no final), tendo ainda o cuidado de consultarem muitos especialistas em Idade Média, arqueólogos e documentalistas, a quem pediram para lerem e corrigirem o seu texto antes de o publicarem, e cujos nomes constam nos agradecimentos finais. Eles próprios declaram que não escreveram um livro de História, mas sim um livro que incluísse as suas perguntas «a alguns dos mais eminentes historiadores e arqueólogos», criando assim uma obra tão agradável de ler quanto rigorosa nas múltiplas abordagens ao tema e remetendo quem quiser saber mais para as obras da especialidade consultadas.

Agora o mau exemplo. Português, para meu desgosto. Publicou recentemente a Visão Biografia o seu número 5, referente a julho/ setembro, dedicado a Eça de Queiroz. O génio da escrita, edição dirigida por Mafalda Anjos, licenciada em Direitoe jornalista, com um numeroso grupo de colaboradores. Não obstante a Biografia ser um exercício da História, não há entre eles um único historiador. E no entanto há ali não só capítulos biográficos sobre Eça e outros contemporâneos, como sobre a sociedade oitocentista, mas tudo muito pesado e déjà lu, sem quaisquer referências bibliográficas, tudo aparentemente saído da cabecinha pensadora destes não-historiadores. Mesmo quando, quase no fim, a publicação nos quer apresentar uma bibliografia queirosiana, não só faltam nela obras fundamentais, como a terceira edição do Dicionário de A. Campos Matos (apresentam a 2.ª do ano 2000!), como incluíram a hoje quase inútil Vida e Obra de Eça de Queiroz, de João Gaspar Simões, na versão de 1973. Sobre a Geração de 70 continuam a transmitir a ideia errada de que a mesma só era composta por literatos (ou pior ainda, de que no Portugal do tempo de Eça todo o conhecimento se reduzia ao dos literatos ou, vá lá, também a alguns artistas). Depois a repetição, pela enésima vez, de alguns erros biográficos, como o de que o escritor viajou «até ao Egito e Palestina com o futuro cunhado» (p. 11; o 5.º Conde de Resende nunca foi cunhado de Eça, pois morreu antes dele casar com sua irmã); que aquando dos jantares dos Vencidos da Vida o Marquês de Soveral era «diplomata em Roma» (p. 70), quando o era em Londres há muito tempo; segue-se a abundante, e também habitual, fantasia de confundir em leituras primárias a ficção queirosiana (metáforas literárias por excelência) com a realidade geográfica e factual da época, em várias páginas e artigos, e nenhuma alusão a factos determinantes, como a invenção em 1878 da telescopia elétrica, precursora da televisão, por Adriano de Paiva, seu condiscípulo em Coimbra (sabendo-se a militante curiosidade de Eça pelos inventos da sua época); ou mesmo a total omissão de factos fundamentais da sua vida e obra, como as duas namoradas que conheceu em Cuba, uma dos quais que com ele se irá cruzar mais tarde na Europa; a sua viagem aos EUA e ao Canadá «para ver o progresso»; a sua defesa intransigente dos direitos dos coolies, que deixou expressa num notável relatório só publicado em 1979, recentemente levada ao cinema por Francisco Manso, o que nem sequer é referido nesta publicação, embora lá se fale de outras versões cinematográficas. Para além de alguns testemunhos pessoais, que são o que são e valem o que valem, e de interpretações literárias de aspetos da obra por Carlos Reis e Isabel Pires de Lima, esta publicação não tem pois qualquer interesse como descrição e interpretação biográfica do escritor, pois, como já se disse, mesmo do ponto de vista iconográfico, é um déjà vu. Mas Eça continua a vender, mesmo o mais do mesmo.

«As ciências históricas são a base fecunda das ciências sociais», escreveu Eça, quando jovem (Prosas Bárbaras). Obviamente que nada temos contra o bom jornalismo. Mas a História não é um diletantismo jornalístico mas sim o estudo profissional persistente, sistemático, descobridor e explicativo das acções humanas e dos diversos ramos do saber. 

J. A. Gonçalves Guimarães

Mesário-mor da Confraria Queirosiana

Autores, livros e revistas

Um dos setores em franca recuperação nesta época de pandemia ativa é o da produção e divulgação do conhecimento escrito em livros e revistas. Mas para além da qualidade dos textos produzidos, começa agora a ser exigível a qualidade gráfica da obra publicada, cuja primeira preocupação deve ser, não a beleza do design, mas a facilidade de leitura. Um livro que ao ler canse o leitor por ter a letra demasiado pequena, imagens ilegíveis ou outras aberrações gráficas, não deve sequer ser editado. Os mínimos recomendados são letra corpo 12 e notas, legendas e bibliografia corpo 10, com imagens inteiras e legíveis, devidamente legendadas, E os direitos autorais referenciados e respeitados. Edita-se muito e isso é bom; exijamos agora qualidade para o prazer e utilidade da leitura.

Esboço 50 anos depois

        


Amanhã, dia 26 de setembro, no Solar Condes de Resende em Vila Nova de Gaia, integrado nas Jornadas Europeias de Património 2020, em que o tema este ano é “Património Educação”, o Gabinete de História, Arqueologia e Património (ASCR-Confraria Queirosiana), a Paróquia Lusitana de São João Evangelista (V. N. Gaia) e o Arquivo Histórico da Igreja Lusitana, com o patrocínio da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, vão realizar a partir das 14,30 um colóquio intitulado “O Esboço: Património, Educação e Juventude nos anos sessenta”, em que serão oradores Eduardo Vitor Rodrigues sobre “A Educação como Património: ontem e hoje”; J. A. Gonçalves Guimarães sobre “Perspetivas educacionais em Vila Nova de Gaia nos anos sessenta do século XX”; Joaquim Armindo Pinto de Almeida sobre “A pró-revista Esboço (1969-1970); Júlio Castro sobre “Os Jovens do Torne e o Movimento Ecuménico”; António Manuel S. P. Silva e outros sobre “A Igreja Lusitana e os Jovens do Torne: um Património da Memória”, seguido de debate e canções de luta dos anos sessenta, por David Rodrigues. No final da sessão será feita a apresentação da edição fac-similada dos três números publicados da pró-revista Esboço, a qual foi proibida de circular a 18 de maio de 1970 pela Direção dos Serviços de Censura «por ser ilegal e inconveniente no seu contexto», tendo os seus promotores sido objecto de inquérito pela PIDE. Esta edição, que recebeu o título de Esboço – boletim dos Jovens do Torne: 50 anos de persistências 1970-2020, para além das páginas fac-similadas da revista, apresenta textos alusivos de António Manuel S. P. Silva; David Rodrigues; J. A. Gonçalves Guimarães e Joaquim Armindo Pinto de Almeida, ficando disponível para venda on line.

Grande Prémio do Romance e Novela   

As novelas Um verão assim, As máscaras de sábado e Damascena, de Mário Cláudio, apareceram à venda no passado dia 25 de agosto reunidas no volume Três Novelas, também lançado na Feira do Livro do Porto em sessão de autógrafos do autor. Entretanto a 14 de setembro este foi de novo agraciado pela Associação Portuguesa de Escritores/ Direcção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas com o Grande Prémio do Romance e Novela 2019 pela obra Tríptico da Salvação editado pela D. Quixote. Mário Cláudio já tinha sido distinguido com este prémio em 1984, com Amadeu e em 2014 com Retrato de Rapaz.           

Porto visto de cima


No passado dia 10 de setembro a editora Centro Atlântico apresentou na Igreja da Misericórdia do Porto a obra Porto Visto de Cima / From Above, com texto de José Manuel Alves Tedim e fotografia de Libório Manuel Silva. No dia seguinte foi a mesma obra apresentada na Feira do Livro do Porto com sessão de autógrafos pelos autores.

Geografia do Porto 

        


No passado dia 10 de Setembro, também na Feira do Livro do Porto foi lançado o livro Geografia do Porto coordenado por José Alberto Rio Fernandes, professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, acompanhado de uma extensa equipa de colaboradores, entre eles os arqueólogos António Manuel A. S. Silva e Sérgio Monteiro-Rodrigues que escreveram o capítulo «Das origens da ocupação humana às origens da cidade», contribuindo assim para a compreensão do cenário geográfico que chegou aos nossos dias.




Amigos de Gaia

Encontra-se em distribuição o Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia, n.º 90, referente a junho de 2020, com artigos de Jaime Milheiro, Virgília Braga da Costa e Salvador Almeida, entre outros. 

Eça no Brasil     


Pela mão amiga do Dr. Ricardo Haddad chegaram-nos do Brasil os dois volumes de Eça de Queirós. Ensaios e Estudos. S. Paulo: Biblioteca 24X7, 2010, de Sylvio Lago, membro de várias academias brasileiras nascido em 1939, com uma extensa bibliografia de ensaios sobre Literatura, Música e outros temas culturais. Nestes dois volumes aborda desde questões biográficas do escritor, como «Raízes brasileiras e a infância de Eça de Queirós», a Geração de Setenta, aspetos da escrita, técnica narrativa e pensamento, personagens, outros escritores contemporâneos, como Camilo, Machado, Júlio Dinis, Ramalho Ortigão e outros, a popularidade de Eça no Brasil e a sua influência na Literatura Brasileira e, por fim, uma Bibliografia Queirosiana. Embora muitos destes temas já tenham sido abordados por muitos outros biógrafos e ensaístas, permanecendo em muitos deles controvérsias e contradições, é sempre interessante comparar as conclusões e os novos pontos de vista que vão surgindo. E sobretudo como é que o Brasil culto continua a dedicar uma enorme atenção e apreço à vida e obra de Eça de Queirós, cujo pai, o juiz José Maria de Almeida Teixeira de Queirós, recorde-se, nasceu no Rio de Janeiro em 1820, no ano da Revolução que tão determinante seria para Portugal e para o próprio Brasil e da qual estamos a comemorar os 200 anos.

Palestras, conferências e workshops

         No passado dia 11 de setembro pelas 21 horas, decorreu no espaço Porto CCD o encontro “Júlio Machado Vaz à conversa com Jaime Milheiro” promovido pela Universidade Sénior Eugénio de Andrade.

         Nos próximos dias 28 e 30 de outubro, Francisco José Viegas, editor e autor de romances policiais, vai realizar um workshop intitulado «À beira do abismo – uma introdução à Literatura Policial».

Vida académica 

“Última aula”

         No próximo dia 28 de setembro pelas 16,50 horas no Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra, o Professor Doutor Carlos Reis, catedrático daquela universidade e autor de notável obra sobre Literatura Portuguesa na qual sobressaem os estudos queirosianos, proferirá a sua lição de jubilação, a qual será também transmitida pelo sistema streaming através da ligação uc.pt/ em direto.

Revolução de 1820

         Com coordenação de Francisco Ribeiro da Silva e outros, encontra-se patente ao público desde 15 de julho no Museu da Misericórdia do Porto a exposição «A Misericórdia do Porto e a Revolução Liberal 1820-1834», a qual encerrará no dia 2 de novembro próximo.

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Eça & Outras, III.ª série, n.º 145, sexta-feira, 25 de setembro de 2020; propriedade dos Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; c.te n.º 506285685; NIB: 0018000055365059001540; IBAN: PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com; www.queirosiana.pt; confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J. A. Gonçalves Guimarães (TE-164 A); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia Cabral.


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