Como todos os pensadores do século XIX, também Eça de Queirós se viu na necessidade de definir o povo, essa entidade social abstrata que emergiu da Revolução Francesa para tomar o poder e que não tem sido fácil de caracterizar: «Há no mundo uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos, com divinas bondades do coração, com uma inteligência serena e lúcida, com dedicações profundas, cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem, que sofrem, que se lamentam em vão. Estes homens são o povo», assim escreveu Eça de Queirós aos 22 anos no Distrito de Évora, mas trata-se obviamente da generosidade de um jovem erudito a inventar um povo ideal, muito distante da realidade, em suma, um povo que não existia, e que nunca existiu.
Os intelectuais oitocentistas, face ao colapso humano, mental e social das classes que tinham detido o poder – os eclesiásticos, a aristocracia e a burguesia – sentiram-se tentados a inventar uma outra classe social que incarnasse os grandes valores éticos e cumprisse o bem estar social, para além de definir as nacionalidades: «o povo é o coração da pátria: a indiferença do povo é a morte da pátria», escreve ainda Eça de Queirós naquele jornal, mas, noutro passo avisa que «o povo, e isto que vagamente se chama o público, leva-se mais pelo entusiasmo do que pelos meios sérios e práticos» (idem). Ou seja, havia o povo e havia o público, duas entidades nem sempre coincidentes, pelo menos na sua abordagem.
O mais fácil era individualizar o povo pelas suas profissões: o camponês, o operário, o caixeiro, o serralheiro, o estivador, o alfaiate, o aguadeiro, o carpinteiro, a criada, etc, etc, eram seguramente povo. Já como entidade colectiva, como “classe” era mais fácil defini-lo pela negativa: o povo não era a aristocracia (os fidalgos e os nobilitados); dele não faziam parte os eclesiásticos, desde o padre cura até ao papa na Igreja Católica, que nas confissões protestantes a questão é outra; do povo não faziam parte os burgueses, os proprietários não nobres nem eclesiásticos, os detentores do capital ou de bens para o realizar, quer fossem fundiários, industriais, do comércio, da banca, dos transportes ou doutros serviços que começavam a nascer.
Entre o povo e os seguramente “não povo” havia então umas franjas de sobreposição, a que se virá comodamente a chamar pequena burguesia, pequenos grupos indefinidos à procura de um melhor lugar na escala social: os bacharéis por Coimbra e pelas Politécnicas (médicos, advogados, engenheiros), magistrados, militares, professores, funcionários públicos, leigos de instituições religiosas, feitores de propriedades, empreiteiros, etc, etc..É nestes grupos sociais que Eça de Queirós colherá o maior número de caracteres para as suas personagens, que transforma em verdadeiros tipos sociais que os memorialistas quererão, à viva força, fazer corresponder a personalidades que existiram mesmo, o que é uma tontice. São modelos, senhores, não são biografados!
No século XIX, povo, eram os que ganhavam à jorna, os assalariados, os soldados, os marinheiros da decadente marinha mercante e de cabotagem e também os da bazófia da marinha de guerra, os pescadores, os trabalhadores sazonais, tendo em conta que grande parte do país era rural de sobrevivência, afora duas ou três culturas intensivas (vinho, cereais, gado); pouquíssimas indústrias (madeiras, cerâmicas, têxteis) e larguíssima percentagem de analfabetos. Grande parte deste proletariado (outra expressão oitocentista) vivia nas vilas e nas poucas cidades. É aí que Eça os vai encontrar no Porto, em Coimbra, em Leiria, em Lisboa, em Évora, em Bristol, em Newcastle, em Paris, por outro lado.
Efectivamente os tipos rurais do povo são poucos na sua obra: uma pastora, alguns caseiros, alguns lavradores; já os rurais deslocados para a cidade são em maior número, nomeadamente as criadas e criados, as governantas, os empregados de hotel, as tendeiras e taberneiros, e pouco mais. Eça não é Camilo. Eça é um escritor urbano que escreveu metáforas sobre o desaparecimento do mundo rural, que o são A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras.
Porém, no século XIX, tudo se fazia em nome do povo, ainda que pelos príncipes (o povo constitucionalizado); pelas igrejas (o povo de Deus) pela burguesia (o povo português); pelos intelectuais (o nosso povo). E foi a esse povo, desarmado após a implantação da monarquia constitucional e após a burguesia ter conquistado o poder, que lhe foi oferecida, titubeante e condicionada, uma nova arma: o voto. E, através dele, ainda que com a ajuda das armas, já no século XX, o povo chegou ao poder, em revoluções eufóricas que logo depois redundaram em grandes tragédias humanas, duas Guerras Mundiais e outras avulsas; bombas atómicas; genocídios e fomes. Os grandes dirigentes que a história do século XX, «o século do povo», regista, são todos de extração popular: Estaline, Mussulini, Hitler, Pol Pot, e tantos outros, não eram nem aristocratas, nem religiosos, nem burgueses e em muitos casos alcançaram o poder pelo voto democrático ou com o geral aplauso das multidões. É certo que Eça também escreveu «As revoluções não são factos que se aplaudam ou que se condenem. Havia nisso o mesmo absurdo que em aplaudir ou condenar as evoluções do Sol. São factos fatais. Têm de vir. De cada vez que vêm é sinal de que o homem vai alcançar mais uma liberdade, mais um direito, mais uma felicidade.
Decerto que os horrores da revolução são medonhos, decerto que tudo o que é vital nas sociedades, a família, o trabalho, a educação, sofrem dolorosamente com a passagem dessa trovoada humana. Mas as misérias que se sofrem com as opressões, com os maus regimes, com as tiranias, são maiores ainda. (…).
As desgraças das revoluções são dolorosas fatalidades, as desgraças dos maus governos são dolorosas infâmias» (Distrito de Évora, 1867).
Não se encontra pois muito o povo na obra de Eça de Queirós, essa entidade abstracta e mítica que Engels, Marx e outros pensadores oitocentistas criaram com o seu tardo-enciclopedismo para a arrumarem nas gavetas dos fenómenos sociais. O que ali encontramos é sobretudo o homem, talvez ainda que muito darwiniano, oscilando entre a banalidade das existências quotidianas e uma inevitável crença no futuro.
Quanto ao mais, ainda estamos como no tempo de Eça: «Nós os Portugueses pertencemos todos a duas classes: uns cinco a seis milhões que trabalham na fazenda, ou vivem nela a olhar… e que pagam; e uns trinta sujeitos em cima, em Lisboa, que formam “a parceria”, que recebem e que governam». (A Ilustre Casa de Ramires). Acertem, faz favor, os seis milhões para sete e os trinta para três mil. É que entretanto, desde que Eça morreu, o número de governantes aumentou. Quanto ao povo, hoje tem televisão e internet, as grandes invenções que estão a levar a democracia a todos os cantos do mundo, a primeira curiosamente inventada por um gaiense de adopção, o físico Adriano de Paiva, contemporâneo de Eça de Queirós, que também profetizou generosamente: «Então, por toda a parte à superfície da terra, se cruzarão fios condutores, encarregados de importantíssima missão… testemunharão por sem dúvida o grau de civilização do grande organismo que se chama – a humanidade» (La Télescopie élèctrique… 1878, p. 23).
Não é isso que temos visto nos noticiários. O povo hoje tem outras preocupações e não sei que “classe” o possa substituir neste seu falhanço.
(Texto apresentado no colóquio com o mesmo título que decorreu no Solar Condes de Resende)
J. A. Gonçalves Guimarães
Mesário-mor da Confraria
Mesário-mor da Confraria
Festival de Folclore
Decorrerá nos próximos dias 30 e 31 de Julho no Solar Condes de Resende o “Festival de Tradições de Terras Queirosianas”, organizado pelo Rancho Folclórico de Canelas, com o apoio da Confraria Queirosiana, o qual foi antecedido por um colóquio no dia 22 de Julho sob o tema “O povo na obra de Eça de Queirós”, em que foram palestrantes J. A. Gonçalves Guimarães, que falou sobre o conceito de povo na obra do escritor, e Nuno Resende que apresentou aspectos de Fraião, a aldeia da “naturalidade” do Padre Amaro.
No festival actuarão grupos etnográficos da Póvoa de Varzim, Évora, Sintra, Coimbra, Aveiro, Baião, Gaia, Leiria, Porto e o Grupo Mahtab de danças egípcias tradicionais.
Livros para o seu Verão
Nos últimos tempos os confrades queirosianos têm publicado vários livros, alguns dos quais só agora nos chegam à mão e que passamos a apresentar. Em todo o caso óptimas leituras de Verão com várias incidências, todos eles a reter e a debater:
Da autoria de Alda Barata Salgueiro chega-nos esta monografia de “Vilar dos Condes. A terra e a sua gente”, situada na Zona do Pinhal da Beira Interior, do concelho de Oleiros. Nesta obra, com prefácio de Luís Manuel de Araújo, a autora, para além dos aspectos geográficos, etnográficos e históricos da sua terra, dá particular relevo ao património humano, às gentes que habitam o lugar e seus antepassados, com memórias de famílias locais que se perpetuam em filhos e netos que, tal como a autora, voltaram ao rincão natal para lhe perpetuar a existência nos século que hão-de vir.
Nuno Gomes Oliveira, o diretor do Parque Biológico de Gaia, que tem dado à estampa uma já numerosa bibliografia sobre a protecção do ambiente, apresenta-nos agora “José Bonifácio de Andrada e Silva o primeiro ecologista de Portugal e do Brasil, com uma recensão da “Memória sobre a necessidade e utilidade do plantio de novos bosques em Portugal (1815)”, com prefácio de Marco António Costa, ex-vice presidente da Câmara Municipal de Gaia.
Começando por nos dizer que «este não é um livro de história, mas um livro que conta uma história, a história de vida de um homem invulgar com uma obra notável», e não podendo deixar de se referir à biografia deste professor da Universidade de Coimbra, fundador do seu Batalhão Académico contra os franceses em 1809, Intendente da Polícia do Porto e superintendente da sua Alfandega e Marinha, a seguir à retirada dos invasores, nesta obra é sobretudo o cientista prestigiado na Europa do seu tempo, o naturalista que estudou novas espécies geológicas e as potencialidades mineiras de Portugal e que elaborou e dirigiu projectos para a reflorestação das dunas e das serras portuguesas, antes de regressar ao seu Brasil a transformar-se no esteio da nova nação que se afirmava.
Muitas das preocupações com a conservação da natureza que já então revelava, só nos dias de hoje estão a ser implementadas, o que mostra a sua inteligência e o seu caráter precursor da moderna Ecologia, sendo por isso verdadeiramente fascinante a revisitação desta biografia do “Patriarca da Independência do Brasil”.
Então lá para o dia 5 de Agosto as montras e escaparates das livrarias deste país exibirão com capa cor de framboesa “Os Lindos Braços da Júlia da Farmácia”, o mais recente inédito de José Rentes de Carvalho, sobre o desconcertante mundo feminino, aqui abordado de uma forma com que o autor de Ernestina e de A Amante Holandesa faz questão de nos voltar a surpreender, nesta sociedade em que a mulher ocupa um lugar cada vez mais proeminente e os homens morrem sempre mais cedo do que elas. Não é um livro cor-de-rosa, mas entre o vermelho e o negro.
Com particular incidência no Turismo, na Cultura e na Regionalização será lançado no final do mês de Julho o livro de Mário Dorminsky intitulado “País em Brasa”, com prefácio de Luís Filipe Menezes, um retrato pessoal sobre o nosso país com particular incidência naquelas áreas. A obra recolhe as crónicas que o director do Fantasporto e vereador da Cultura da Câmara Municipal de Gaia foi publicando no jornal Grande Porto nos dois últimos anos, afirmando na introdução que poderemos «começar a ver a tal “luz ao fundo do túnel”» em breve. Que Deus o oiça, perdão, o leia, e que faça por isso.
Mário Cláudio
No passado dia 22 de Julho em Paredes de Coura, foi apresentada a biografia de Tiago Veiga, bisneto de Camilo e poeta modernista, da autoria de Mário Cláudio, um volume com 800 páginas.
Notícias recentes de confrades
Após cinco anos como reitor da Universidade Aberta, por sua decisão, Carlos Reis regressou à Universidade de Coimbra; no passado dia 22 de Julho, Mário Vieira de Carvalho, musicólogo da Universidade Nova de Lisboa veio a Gaia falar de Wagner em Portugal no Auditório Municipal; Charters de Azevedo prepara a edição do seu livro “A Estrada de Rio Maior a Leiria em 1791” que será lançado em meados de Setembro.
Tomar um Porto com:
Desta vez permitam-me que brinde à memória de Salvador Caetano, o grande industrial gaiense, e também com Rui Tavares, pelo seu texto “O Milagre do Lixo” e outras clarividências; com Pedro Dias, o novo director da Biblioteca Nacional; Ana Raquel Guerra, porque vale mais tarde do que nunca; Carlos Reis, porque não há ensino sem exigência; Elvio Passos, pelo que teve de aturar no exercício da sua profissão; Helmut Kohl por dizer à chanceler alemã que ela está a destruir a Europa.
Não, não quero brindar com:
Rupert Murdoch, que desejo que fique sem telemóvel; os clubes de futebol portugueses que «gastaram pelo menos 40 milhões de euros em contratações» e não foi de historiadores, nem de cientistas nem de agricultores; apenas de habilidosos pontapeadores de bola; já nos chegavam os inúteis estádios de futebol do Euro 2004.
Eça & Outras, IIIª. Série, n.º 34 – Segunda-feira, 25 de Julho de 2011
Cte. n.º 506285685 ; NIB: 001800005536505900154
IBAN:PT50001800005536505900154;Email :queirosiana@gmail.com;
confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com;
coordenação da página: J. A. Gonçalves Guimarães (TE-638); redacção: Fátima Teixeira; inserção: Amélia Cabral.
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