Heróis que passam,
heróis que ficam
Recentemente
apareceu em Mértola mais uma estátua romana togada. Muitas destas
representações de antigos magistrados, ou mesmo de imperadores, aparecem sem
cabeça, o que não quer dizer que tenham sido decapitados. Na sua sabedoria
prática os antigos municípios romanos sabiam que os estatuados em vida não eram
eternos, e por isso, mesmo que não fossem substituídos antes, um dia morreriam
e devido a essa circunstância incontornável seriam substituídos no templo e na
praça pública. Ora, pensavam eles, para quê substituir a estátua toda se na
realidade bastava mudar a cabeça e a inscrição na base? É que tudo o resto,
arte, postura, traje, simbólica, culto reverencial pela pessoa que ocupou o
cargo, continuaria igual nos que se lhe seguiam. Logo bastava gastar dinheiro
apenas num novo busto e encaixá-lo na venerável estátua que assim até permitia
um certo arremedo, se não de eternidade, pelo menos de continuidade, o que não
sendo a mesma coisa, tem os seus confortos espirituais e não só. Assim se faziam
as perpetuidades mais práticas.
Com as
estátuas de mármore tal é possível e algumas dessas obras de arte, figuras de
corpo inteiro e bustos, já eram feitos nesse pressuposto, com os encaixes
necessários para as previsíveis substituições. Nas estátuas de bronze, fundidas
por inteiro ou em partes, não sendo impossível a operação, ela é muito mais
difícil. Serrar uma cabeça, e depois soldar uma outra no seu lugar, raramente
dá origem a remendo perfeito, parecendo que o novo estatuado está na festa com
um fato de aluguer. Por isso, quando as sociedades se interrogam sobre a
validade e o significado das estátuas de bronze, estas normalmente acabam
apeadas, partidas aos bocados, e quantas vezes derretidas de novo para dar
origem a novas estátuas ou utilíssimos elementos de pichelaria.
Se é certo que
já os chineses, os egípcios, os gregos e outros fizeram antiquíssimas estátuas
de bronze, elas continuam hoje presentes nas nossas praças, se bem que pelo
facto de valerem 7 € o quilo na sucata tenham vindo a desaparecer umas tantas
de pequeno e médio porte e com pedestal rasteirinho, o que é barato se
compararmos com o preço da arte nelas investido. Recentemente, nos EUA, as novas
gerações que já não se revêem nos heróis confederados, ou que deles sabem as
más memórias, entenderam que deviam acabar com o seu pimponeio na praça pública
e, no mínimo, mandá-los, se não para o alto forno, ao menos para o museu,
substituindo-os por heróis mais consensuais. Já no Iraque de Saddam Hussein, a
fúria dos invasores estrangeiros derrubou as suas estátuas erguidas pelo seu
regime. Um pouco mais atrás, com a queda da União Soviética apearam-se lenines
e estalines por todo o lado. Na derrocada do Império de papel português,
navegadores, militares e sertanejos existentes nas ex-colónias foram apeados do
pedestal. Com o habitual humor cabo-verdiano, vi na cidade da Praia uma estátua
laudatória a um antigo governador na qual uma crioula sentada na base, em vez
de continuar a apontar o indicador agradecido para o homenageado, foi este dedo
substituído pelo apontar do dedo médio e o recolhimento dos restantes (se não
percebeu a descrição, experimente). Salvou-se a estátua sem grande dano e
atualizou-se a mensagem, o que nem sempre é possível.
Ele há mesmo
estátuas que, entre o atelier do artista e a praça pública mudam de
personalidade: no Rossio, em Lisboa, aquela «vela de estearina colossal e
apagada» (Eça de Queirós, O Primo Basílio),
foi feita para retratar o austríaco Maximiliano do México, que entretanto os
mexicanos fuzilaram. Com a despesa já feita, mas por pagar, a fundição italiana
que o fez concorreu e ganhou o concurso para o monumento a D. Pedro IV de
Portugal, afinal primo e muito parecido com o imperador mexicano recusado. E aí
está ele lá no alto, dispensando pormenores. Por essas terras fora há muita
estátua, muito busto, que em muitos casos são de gente irrelevante fora da
congregação ou do círculo de devotos que as ergueram, às vezes até de figuras
controversas impostas à tolerância da distração pública. Se as devoções filiais
e familiares se percebem, já o confundir esse restrito afeto com o
reconhecimento público, no imediato ou a prazo, poderá ter más consequências.
Em muitos casos, para sabermos o que fez o estatuado, perante o laconismo do
letreiro, nem mesmo nos vale a Grande Enciclopédia, temos mesmo de ir perguntar
ao café da esquina e, uma vez aí, talvez tenhamos sorte em saber quem foi
realmente o filho da terra, atendendo que algumas há em que a sua existência e
relevância local é absolutamente lendária, mitológica, ficcional, um verdadeiro
gato por lebre mistificador.
Por outro
lado, quanto verdadeiro herói não jaz nos arcanos do esquecimento da memória
presente, ocupada que anda com gente irrelevante, mas momentaneamente famosa pelo
seu saracotear anatómico ou mental. Mas assim cheia e ocupada a opinião social
quotidiana, não creio que daqueles outros queira os feitos e o exemplo.
Eça escreveu
um dia a Oliveira Martins dizendo que «um herói que se ressuscita vale um filho
que se gera» (Carta de 14.09.1898). Talvez, mas convém que o ato gerador não
seja um devaneio pessoal, mas antes um espelho da comunidade e que esta se reveja
na estátua erguida. Não chega perpetuar o herói, pois o importante é que o ato
ajude a perpetuar a comunidade que o terá como exemplo, pois de outro modo,
nisto de estátuas, uns heróis passam, outros heróis, mesmo sem elas, ficam. Per omnia saecula saeculorum.
J. A. Gonçalves Guimarães
Mesário-mor da Confraria
Livros e revistas
É hoje
lançado no capítulo da Confraria Queirosiana pelo seu diretor, o egiptólogo
Luís Manuel de Araújo, o n.º 14 da nova série da Revista de Portugal dedicada ao compositor Alfredo Napoleão
(1852-1917), com artigos de Susana Moncóvio (Luísa Ey (1854-1936): aspetos
biográficos de uma divulgadora de Eça de Queirós na Alemanha); Paulo Sousa
Costa (O domínio templário de Mogadouro e Penas Roias no século XIII);
Dagoberto Carvalho Jr (São Gonçalo de Amarante, o santo que não foi e é.
Contribuição ao estudo de um devocionário); J. A. Gonçalves Guimarães (O
«Relicário D. João I» de Filipe José Bandeira); José Manuel Gonçalves (João
Martins Silva Marques: «o mais sintrense dos não sintrenses»); J. Rentes de
Carvalho (Apresentação do livro Trás-os-Montes.
O Nordeste, em Mogadouro e em Lisboa); José António Afonso (Nell Leyshon, Del color de la leche). O presente
número apresenta ainda a Bibliografia 2016 dos sócios da ASCR-Confraria
Queirosiana e o Relatório de Atividades da associação.
Neste mesmo capítulo são também
lançadas duas dissertações de Mestrado de dois investigadores do Gabinete de
História, Arqueologia e Património, apresentadas recentemente na Faculdade de
Letras da Universidade do Porto e editadas pela Confraria Queirosiana em
parceria com as Edições Afrontamento, a primeira intitulada “Cultura e Lazer.
Operários em Gaia, entre o final da Monarquia e o início da República
(1893-1914)”, apresentada pelo seu orientador Professor Doutor Gaspar Martins Pereira,
que sobre a mesma escreveu: «Neste trabalho de Licínio Santos sobre representações
da cultura e do lazer do operariado de Gaia, em finais do século XIX e inícios
do XX… é bem perceptível essa forte articulação entre o trabalho, a cultura e o
lazer que caracteriza a «cultura popular», na perspectiva de Richard Hoggart, e que forma, também, o
núcleo central da «cultura operária».
Por sua vez, a dissertação de Maria
de Fátima Teixeira, segundo o seu orientador, Professor Doutor Jorge Fernandes
Alves que igualmente apresentou a obra, «… traz-nos, com o presente volume, uma
larga e fundamentada incursão a esse complexo industrial que foi a Companhia de
Fiação de Crestuma, colocando questões e propondo respostas, levantando novas e
pertinentes problemáticas, com base numa pesquisa incisiva de fontes
documentais… cujos espaços tem calcorreado e conhecerá como poucos». Na ocasião
esteve igualmente presente o patrocinador da edição e proprietário daquele
complexo industrial em recuperação, Dr. Ricardo Haddad que, baseado nos seus
conhecimentos e experiência internacionais, escreveu um texto de apresentação
que relaciona a história desta empresa gaiense com a indústria têxtil mundial.
A obra será também divulgada no Brasil.
Neste mesmo dia na Póvoa de
Varzim A. Campos Matos lançou a 3.ª edição do seu Diário Íntimo de Carlos da Maia (1839-1930), publicado pelas
Edições Colibri. Obra maior da ficção queirosiana, o autor assume-se nela como
continuador de Os Maias, mas sem ser
apenas – ainda que um gigantesco apenas
– uma reencarnação de Eça de Queirós e da sua escrita, mas também de todo o pathos biográfico recriado da personagem
principal daquele romance, que a obra inicial vê assim continuada neste Diário Íntimo que já vai em três
edições, esta última com posfácio do próprio autor e uma recensão de Dominique
Sire sobre a primeira edição. Tendo aqui Carlos da Maia sobrevivido ao seu
criador até dezembro de 1930, este texto apresenta o mundo sobre que Eça
poderia ter refletido se a morte o não surpreendesse a 16 de agosto de 1900. Se
em vez de ter morrido com cinquenta e cinco anos, os oitenta e cinco que então
teria naquela data não eram um favor dos deuses por aí além a tão notável e
humano escritor. Com esta obra imperdível de A. Campos Matos ficam assim
saldadas umas certas contas com a distração divina.
Com a gentileza de dedicatória
amiga chega-nos um novo livro de Dagoberto Carvalho Júnior intitulado “De
Oeiras a Oeiras pelo Recife”, editado pela Editoração Eletrônica de Olinda,
Pernambuco, com prefácio de Fonseca Neto, o qual reúne «Memórias pessoais,
porquanto cerca de quinhentos artigos publicados… ao longo de vinte e dois anos
– reunidos em outros livros do autor, integram as “minhas memórias dos outros”,
como às suas chamou Rodrigo Octávio», nomeadamente artigos publicados na nova
série da Revista de Portugal e, neste mesmo livro um «Encontro em Vila Nova de
Gaia» datado de maio deste ano, quando esteve entre nós por breve e já saudoso
tempo.
Palestras, cursos, congressos e outros
eventos
Património Cultural de Gaia
No passado dia 28 de outubro decorreu
no Solar Condes de Resende a sessão de abertura do Curso livre sobre o
Património Cultural de Gaia, organizada pela Academia Eça de Queirós com a
colaboração da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia através do Solar Condes de
Resende e certificado pelo Centro de Formação de Associação de Escolas Gaia
Nascente. A sessão foi presidida por Eduardo Vitor Rodrigues, presidente da
Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, ladeado por José Manuel Tedim, da
direção da Academia, Carlos Sousa, em representação da diretora daquele Centro
de Formação e J. A. Gonçalves Guimarães diretor do Solar e coordenador destes
cursos desde 1991. A primeira parte foi preenchida pela entrega dos
certificados do curso anterior aos alunos e professores presentes. Na segunda
parte, como professor de Sociologia, o presidente da autarquia gaiense
apresentou o tema “Património Cultural e Autarquias”. No dia 4 de novembro,
como professor de Património, J. A. Gonçalves Guimarães apresentou “Teoria e
Metodologia do Património” e no próximo dia 18 o biólogo Nuno Oliveira falará
sobre o “Património Natural de Gaia”. A 16 de dezembro o arqueólogo António
Manuel S. P. Silva falará sobre o “Património Arqueológico de Gaia”,
prosseguindo o curso no próximo ano com sessões apresentadas pelos diversos
coordenadores deste projeto em execução pelo Gabinete de História, Arqueologia
e Património da ASCR-Confraria Queirosiana.
Imprensa diária e Grande Guerra
No passado dia 10 de novembro
decorreu no Arquivo Municipal Sophia de Mello Breyner de Vila Nova de Gaia um
colóquio subordinado a este tema organizado pelo CITCEM da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto. Na sessão de abertura Jorge Fernandes Alves falou
sobre “ Um jornal na História – O Comércio do Porto”, cuja coleção se guarda
neste Arquivo e que durante muitos anos teve uma secção especialmente dedicada
aos assuntos de Vila Nova de Gaia.
Colóquio dos Olivais
Nos dias 20 a 25 de novembro
decorreu no Centro Cultural Eça de Queiroz em Lisboa o III Colóquio
Luso-brasileiro dos Olivais/Lumiar, XXXIII Colóquio dos Olivais e IV Colóquio
Rádio+Cultura. Entre muitos outros oradores falaram A. Campos Matos sobre
“Anotações Queirozianas”, Fernando Andrade Lemos “Lembrando Eduardo Sucena” e
Luís Manuel de Araújo “Revivendo Eça no Egito”.
Almanaques de Eça em leitura
Hoje, dia 25 de novembro, na
livraria do Porto da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, pelas 17 horas, a
Professora Isabel Pires de Lima participará nas “Leituras de Casa”, um ciclo de
leituras e conversas, desta vez sobre “Almanaques e outros Dispersos” de Eça de
Queirós.
Exposições
Conforme informamos na página
anterior, abriu ao público no passado dia 4 de novembro no Solar Condes de
Resende o Salon d’Automne queirosiano
2017 numa cerimónia muito concorrida por parte dos artistas, seus amigos e familiares
e diversos sócios e confrades. A abertura foi feita pelo mesário-mor da
Confraria Queirosiana, J. A. Gonçalves Guimarães, pelo presidente do conselho
fiscal e diretor dos Auditórios Municipais de Gaia, Dr. Manuel Filipe, e pelo
presidente da assembleia geral da Confraria e da direção da Federação das
Coletividades de Gaia, César Oliveira, tendo todos eles usado da palavra para
se referirem a este evento que conta já com 12 edições. Foi curadora da
exposição Maria de Fátima Teixeira, responsável pela edição do catálogo.
Homenagem associativa
No passado dia 27 de outubro, no
Auditório Municipal de Gaia, a Federação das Coletividades de Vila Nova de Gaia
prestou homenagem a Eduardo Vitor Rodrigues como dirigente associativo com um
espetáculo em que intervieram o Ginasiano Escola de Dança, a Escola de Música
de Perosinho, o Grupo de Percussão da Academia de Música de Vilar do Paraíso, o
Estúdio de Ópera da Fundação Conservatório Regional de Gaia e a Orquestra do
Fórum Cultural e o Coral de Gulpilhares. Ao homenageado foi ainda entregue uma
obra de Arte representando um barco rabelo.
Prémio
A Quercus – Associação Nacional
de Conservação da Natureza, Organização Não Governamental de Ambiente com maior
intervenção à escala nacional, que a 31 de outubro passado comemorou 32 anos de
existência, atribuiu o Prémio Quercus 2017 ao biólogo Nuno Gomes Oliveira,
licenciado pela Universidade de Bordéus e doutorado pela Universidade de
Coimbra, autor do projeto do Parque Biológico de Gaia que dirigiu entre 1983 e
2016 (instituição que igualmente recebeu este galardão em 2011), e também dos
projetos do Parque Biológico de Vinhais, da Reserva Natural das Dunas de S.
Jacinto, da Reserva Natural Local do Estuário do Douro e de muitas outras
intervenções ambientalistas publicadas em diversos livros e dezenas de artigos
publicados em revistas nacionais e estrangeiras.
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Eça
& Outras, III.ª série, n.º 108 – sábado, 25 de novembro de 2017; propriedade
dos Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; C.te. n.º 506285685; NIB:
0018000055365059001540; IBAN:
PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com; www.queirosiana.pt;
confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com;
vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J. A. Gonçalves Guimarães
(TE-638); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia Cabral.
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