N.º 160
O desconhecido sábio da minha rua
Nesta
estrada larga da vida passamos por muita gente em quem não reparamos, nós e
eles metidos nos nossos mundos particulares. Quando nos lembramos do quanto
poderíamos ter tido algum humano gosto se tivéssemos parado a conversar com
eles na esquina, já é tarde, a roda do tempo já desandou e eles já cá não
estão. Vem-nos então uma certa vontade de rebobinar a fita do tempo, puxar atrás
o filme da nossa existência, mesmo sabendo que tal sempre será uma míngua da
realidade e, quantas vezes, uma quase completa ficção motivada pela perda de
pedaços do tempo que poderiam ter sido mais belos. Fazemo-nos então reparadores
de factos passados com todos os equivocos que daí advêm, pois para eles
reconstruímos palcos, repintamos cenários, inventamos falas e queremos que os
enredos terminem em apoteoses. Esta é a pecha dos literatos. Nós, os
historiadores, somos mais aprendizes de sacerdotes de Chronos, os únicos capazes, através de rituais próprios, muita
insistência e adequados incensos, de ressuscitarmos aqueles que por nós
passaram, para os voltarmos a trazer ao proscénio da vida. Ainda que por um
novo breve instante.
Todo este bocado
de prosa surgiu porque o meu amigo Tony Klauf, mago do Ilusionismo, sem saber e
sem querer (que o assunto era outro) me veio recordar que na rua da minha infância
havia um sábio com quem nunca falei, mas de quem seguia com curiosidade os
raios da sua aura que os vizinhos dispersavam em vaguíssimas alusões. Dele
recordo a figura corpulenta, face bondosa quase sempre distante, cigarrilha no
canto da boca, a originar um certo trejeito de olhos pisquentos, gabardine
castanha sazonal, carregando duas amplas pastas de couro, uma de cada lado, que
volta e meia pousava no chão para acariciar uma nossa gata gorda e ladina a
quem dispensava regularmente tal familiaridade no trajeto entre a casa onde
vivia e a paragem do elétrico (e depois do trólei) que o levavam e traziam do
Porto, onde se dizia que dava aulas, mas ninguém sabia dizer ao certo em que
academia, e por ali não havia aluno seu que o esclarecesse. Morava na casa do
senhor Alberto alfaiate, que pouco tempo antes da sua morte descobriu que o
sábio era seu pai e assim o divulgou urbi
et orbi para espanto da vizinhança, que entre outras estorietas contava que
o professor (assim o referiam e toda a gente logo sabia de quem se tratava) só
estivera casado quinze dias até que a esposa fugiu irritada por todos os dias
acordar com a cama conjugal pejada de livros. Os poucos que iam lá a casa, na
rara oportunidade de tirar medidas para um novo fato ou para uns calções mais elegantes
ou calças tipo golf, ficavam abismados com a quantidade de estantes a treparem
pelas paredes das escadas de vários andares acima, ajoujadas de livros e
revistas, não ao alto, como na biblioteca do liceu, mas deitados, empilhados
uns sobre os outros, tantos eles eram. E, pelo meio, em vitrinas, estranhos
aparelhos com ponteiros e quadrantes que certamente mediriam enigmáticos
valores.
Vim mais tarde
a saber que “o professor” era o Dr. Mário de Morais Afonso, licenciado em
Ciências Filosóficas pela primeira Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, que foi, pelo menos, professor do Instituto Industrial do Porto, esteve
ligado à Escola Moderna desta cidade, de inspiração anarquista, e que terá
chegado a trabalhar com o Professor Santos Júnior na Sociedade Portuguesa de
Antropologia e Etnologia então sediada na Faculdade de Ciências. Mas para que
quereria ele o baú de aparelhos e truques de Ilusionismo fabricado por um nome
de referência na Arte do início do século XX e que um dia, após muita
insistência, vendeu a Tony Klauf?
A geração formada naquela primeira faculdade era bastante
erudita, mas também demasiado eclética, conforme se pode verificar pelas obras
e trabalhos que publicaram os seus professores e alunos, aliás na velha
tradição dos deslumbrados enciclopedistas tardios do século XIX, quase que
diríamos incapazes de se fixarem numa só ciência, de se especializarem. Sobre
tal até Eça de Queirós escreveu a propósito do seu antigo professor Ramalho
Ortigão, quando em determinada época «…o seu trabalho tinha… a irregularidade
da sofreguidão: ia do socialismo à astronomia, da história à química, lendo
hoje um estudo sobre o Jubileu de Bonifácio VIII, amanhã um compte-rendu sobre a refinação dos
açúcares. Enchia-se de noções, de factos, de pontos de vista, de ideias» (Eça
de Queirós, Notas Contemporâneas). E
quantos eu tenho, entretanto, assim conhecido, mestres e discípulos de uma
nunca consistente “Escola de Antropologia do Porto”?
Já nos anos oitenta do século passado, após a morte do professor, o alfaiate, seu revelado filho, vendeu a biblioteca a um alfarrabista de Braga, dispersando-se assim um espólio interessantíssimo reunido durante décadas, à excepção de algumas obras compradas por alguns avisados que moravam perto. A casa onde vivia foi demolida bem assim como outras antigas existentes na mesma rua, que hoje não passa de mais um local incaraterístico. A sua memória foi-se apagando e iria desaparecendo aos poucos não fora um acaso fortuito ter lançado nestes dias pontes de convergências diversas entre Tony Klauf e o Ilusionismo, António Manuel Silva e a Arqueologia, Nuno Oliveira e a Biologia e as memórias de infância do autor destas linhas. Havia efetivamente um sábio na rua da minha infância, mas por agora só estas recordações de cada um dos nomeados o voltaram a trazer ao convívio possível que a História proporciona.
J.
A. Gonçalves Guimarães
secretário da direção
Autores, livros e revistas
Ricardo Charters d’ Azevedo, que tem dado à estampa
diversas obras monográficas sobre Leiria e a sua região, acaba de publicar uma
nova edição de Couseiro ou Memórias do
Bispado de Leiria, descrições das Terras do Lis nos séculos XVI e XVII, a
partir de uma cópia de 1898, com um exaustivo estudo prévio sobre esta curiosa
obra e as informações que disponibiliza aos leitores de hoje.
No passado dia 2 de dezembro no Palacete Araújo Porto da Santa Casa da Misericórdia do Porto, foi apresentado por Francisco Ribeiro da Silva, mesário para a Cultura, o volume com 484 páginas das Atas do V Congresso da instituição, o qual decorreu em março de 2020. Com uma comissão científica composta, entre outros, por Francisco Ribeiro da Silva, António Barros Cardoso, Jorge Fernandes Alves e José Manuel Tedim, o volume abre com o texto «Misericórdia, Liberdade e Património» pelo provedor António Tavares, e «Palavras de Apresentação do Congresso» por Francisco Ribeiro da Silva, a que se seguem as comunicações ali apresentadas, entre as quais, «Alguns Negociantes da Praça do Porto, Irmãos da Misericórdia no Período Constitucional (1818-1825)» por J. A. Gonçalves Guimarães (p. 103-120); «As Misericórdias na Conjuntura Crepuscular da I República: o I Congresso das Misericórdias (1924)», por Jorge Fernandes Alves (p.139-156); «O “Álbum da Sancta Casa da Misericórdia do Porto”, Fonte Histórica e Objeto Artístico», por Nuno Resende (p. 231-250); «Mercadores de Vinho do Porto, Beneméritos da Santa Casa (Século XVIII) – Fortaleza de Fé Manifestada em Boas Práticas», por António Barros Cardoso (p. 341-350); e terminando com «A Santa Casa da Misericórdia do Porto nos inícios da Restauração (1640-1650): Conflito Laboral com o Cirurgião Sucarelo e Suspeitas de Fraude na Eleição do Provedor» por Francisco Ribeiro da Silva (p. 459-479). Foi aí anunciado que o VI Congresso decorrerá em 2023.
Acaba de ser divulgado o e-book Sepulturas escavadas na rocha da fachada atlântica da Península Ibérica. Atas do Congresso Internacional que decorreu em 19 e 20 de outubro de 2017 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Coordenado pelo Professor Mário Jorge Barroca e editado pelo CITCEM, entre os muitos trabalhos publicados sobre o tema apresenta o estudo «As sepulturas escavadas na rocha do Castelo de Crestuma (Vila Nova de Gaia, Norte de Portugal). Contexto e problemática» da autoria de António Manuel S. P. Silva, Laura C. P. Sousa, Paulo A. P. Lemos e Filipe M. S. Pinto, arqueólogos da equipa da intervenção arqueológica no Castelo de Crestuma organizada pelo Gabinete de História, Arqueologia e Património da ASCR – Confraria Queirosiana.
No passado dia 10 de dezembro foi lançado na
Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto o 2.º volume da sua
coleção “Memória Perecível” intitulado O
Mundo que Vivi, tal como o colóquio organizado em 2015 por esta centenária
instituição e que terminou em julho do ano seguinte. Apresentam-se agora
publicadas as intervenções feitas nesse âmbito por César Príncipe, Fernanda
Gomes e Júlio Gago. Memórias de outros tempos mas ainda presentes nestas
primeiras pessoas.
Mário
Cláudio
Na sequência da edição em Espanha do livro Buenas noches señor Soares, no passado dia 14 de dezembro na Livraria Lé em Madrid decorreu «Uma Conversa com Mário Cláudio» integrada nas sessões “Diálogos com a Literatura” promovidas pelo Instituto Camões e a Embaixada de Portugal. No dia 18 de dezembro, na Biblioteca Municipal de Amarante, pólo de Vila Meã, este autor apresentou a sua recente obra Embora Eu Seja Um Velho Errante integrada no ciclo «Encontros com Autores», e que teve como enquadramento a inauguração da exposição «Cadernos, cartas, papéis e notas de um velho errante» pertença do autor.
Brasil
Alberto Rostand Lanverly; foto Felipe Camelo |
O Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Alagoas, Brasil, conferiu recentemente ao Professor Engenheiro Civil Alberto Rostand F. Lanverly de Melo a Comenda Professor Engenheiro Civil Hermano Cardoso Pedrosa «pelos relevantes serviços prestados à Engenharia, Agronomia e Geociências alagoanas». O agraciado é atualmente o presidente da Academia Alagoana de Letras.
Acaba de ser publicado no Brasil um novo livro de
Mário Cláudio intitulado Um sopro em
Nazaré e outros contos de Natal pela editora Pontes, Campinas, São Paulo, o qual reúne textos anteriormente dispersos por
antologias, jornais e revistas.
Cinema
Eça de Queirós no Auditório de Gaia
No passado dia 25 de novembro, dia de aniversário de Eça de Queirós, foi exibida no Auditório Municipal de Gaia a longa-metragem O Nosso Cônsul em Havana, do realizador Francisco Manso, filme muito belo – como é timbre das realizações deste cineasta – que recria a passagem ficcionada de Eça de Queirós por Havana enquanto cônsul em Cuba em 1872-1874, com viagem intercalar ao Canadá e Estados Unidos da América. Desta experiência profissional e política resultaram o relatório «A Emigração como Força Civilizadora», publicado a primeira vez apenas em 1979 por iniciativa do jornalista Raúl Rego; a novela O Mandarim (uma subtil vingança intelectual contra o status quo internacional); e as suas relações, ainda hoje mal conhecidas, com a estadunidense Mollie Bidwel recriada no filme e de quem chegou a estar noivo, e com a dinamarquesa Anna Conover, então ainda casada e curiosamente aqui omitida, relação essa que haveria de perdurar até ao fim das suas vidas.
Cursos
História – Património - Turismo
Prosseguirá no próximo mês de janeiro no Solar Condes de Resende o curso livre sobre Historia, Património e Turismo, presencial e por vídeo conferência. Assim, no sábado dia 8, como habitualmente entre as 15 e as 17 horas, terá lugar a 7.ª sessão intitulada «Ao Sabor de Portugal – Rotas de Turismo Gastronómico» pela Prof.ª Dr.ª Olga Cavaleiro, do Instituto Politécnico do Porto e no dia 22 a 8.ª sessão pelo Dr. Luís Pedro Martins, presidente da Entidade Regional de Turismo do Porto e Norte de Portugal
Escultura
No passado dia 27 de novembro o escultor Hélder de
Carvalho apresentou ao público a sua mais recente obra, desta feita a estátua
em meio corpo em bronze patinado do patrono da Fundação Eng.º António de
Almeida, inaugurada na sua sede na cidade do Porto. São já numerosas as obras
deste escultor espalhadas pelos espaços públicos e privados de Braga, Lisboa,
Porto, Póvoa de Varzim, Torre de Moncorvo, Vila Nova de Gaia, onde tem o seu
ateliê. E outras terras do país.
Exposições
Água Fresca. Exposição de Cerâmica Popular Portuguesa
No Solar Condes de Resende continua patente ao público esta mostra de dezenas de peças recolhidas por Armando de Mattos em 1938 para a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, e desde então acrescentadas com novas peças dos centros oleiros de Nisa, Bisalhães, Estremoz, Barcelos, Ossela, Açores, Loulé, Felgar, Caldas da Rainha e outros espalhados pelo país, tendo alguns destes núcleos sido já estudados e publicados por investigadores do Gabinete de História, Arqueologia e Património, cuja bibliografia também aqui se disponibiliza.
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Eça
& Outras; propriedade da associação cultural Amigos do Solar Condes de
Resende - Confraria Queirosiana; C.te n.º 506285685; NIB:
0018000055365059001540; IBAN:
PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com; www.queirosiana.pt;
confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com;
vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J. A. Gonçalves Guimarães
(TE-164 A); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia Cabral.
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