terça-feira, 25 de maio de 2021

Eça & Outras

As memórias de guerra

Fui recentemente visitar um amigo de longa data no seu retiro geresiano, que me informou que estava a escrever as suas memórias do tempo em que esteve na Última Guerra Colonial e dos acontecimentos que nela viveu, muitos dos quais dolorosos e que ainda hoje o atormentam. Homem generoso e sensível, confidenciou-me que, tal como acontece com muitos outros que por lá passaram, não tem sido fácil viver com este peso. O passar ao papel essas más recordações, acompanhado de um permanente exercício de reflexão sobre elas e o seu enquadramento num determinado contexto de guerra, tem-lhe proporcionado algum alívio. Outros têm preferido negar, tentando esquecer ou tentando apagar, sem o conseguirem. É conhecido que, com a liberdade de expressão e divulgação que o 25 de Abril proporcionou, o afã memorialístico dos antigos combatentes tem produzido um número infindável de livros, uns ficcionados, outros testemunhos escritos, e também em gravações sonoras e de imagens, coleções de memorabília, algumas delas com objetos macabros ou, no mínimo, insólitos, outros etnográficos, além de outros perigosos, como armas ou munições e outra militária, representativos desses catorze anos de guerra em cinco frentes: Estado Português da Índia, Angola, Guiné-Bissau, Moçambique e Timor-Leste. Se é certo que muitos escrevem, e até publicam, essas memórias absolutamente pessoais, mas também colectivas, pois a guerra tocou a todos de uma forma ou de outra, a sua qualidade é muito variável, pois depende da capacidade de escrita do autor, das situações que viveu ou que observou e da compreensão que sobre elas teve ou tem agora no ato de as passar ao papel ou a outro suporte. Recordemos que durante as comissões de serviço uma das tarefas que minoravam o distanciamento era a prática, às vezes diária, da correspondência com a namorada ou a madrinha de guerra, os pais, outros familiares ou amigos distantes. Por isso muitos dos combatentes produziram então, cada um à sua conta, centenas de cartas e de aerogramas, hoje fontes inesgotáveis de memórias, quando guardados. Em alguns casos já publicados em livro, como por exemplo, Morto por te ver. Cartas de um soldado à namorada (Angola, 1967-1969), de Cesário Costa, Porto: Edições Afrontamento, 2007.

Se este afã publicista é legítimo e até compreensível, recordemos que, noutro contexto, sobre ele escreveu Eça de Queirós: «Eis aí uma maneira de perpetuar as ideias de um homem que eu afoitamente aprovo – publicar-lhe a correspondência! Há desde logo esta imensa vantagem – que o valor das ideias (e portanto a escolha das que devem ficar) não é decidido por aquele que as concebeu, mas por um grupo de amigos e de críticos, tanto mais livres e mais exigentes no seu julgamento quanto estão julgando um morto que só desejam mostrar ao mundo pelos seus lados superiores e luminosos» (Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes), ou seja, que a publicação das correspondências deveria ser adiada para depois da ausência viva dos correspondentes. Mas neste caso dos antigos combatentes a urgência tem-se entendido como uma necessidade de aclarar uma discussão que continua em aberto sobre a da legitimidade e utilidade da Última Guerra Colonial. Voltando a Eça, já ele tinha escrito no século XIX: «Para que temos colónias? E ai de nós que não as teremos por muito tempo! Bem cedo elas nos serão expropriadas por utilidade humana. A Europa pensará que imensos territórios, pelo facto lamentável de pertencerem a Portugal, não devem ficar perpetuamente sequestrados do movimento da civilização; e que tirar as colónias à nossa inércia nacional, é conquistá-las para o progresso universal.» (Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre). Como é sabido, ninguém entre nós quis saber destas reflexões para nada e, passados cem anos, deu no que deu: mortos, estropiados, inadaptados, retornados e refugiados, e felicidades adiadas. E produção de memórias, como exercício de tentativa da sua compreensão.

          Este tipo de escrita, as memórias pessoais, não é novo, embora ao longo dos tempos tenha assumido formas muito variadas. Mesmo Eça de Queirós (1845-1900) parte das memórias da sua ida ao Próximo Oriente em 1869, foram logo publicadas em janeiro seguinte no jornal Diário de Notícias e, anos mais tarde, num livro com o título de O Egipto. Notas de Viagem, tendo guardado as restantes recordações dessa viagem para as ficcionar no romance A Relíquia. Alguns escritores (e quantos outros que ainda o não são) alimentam diários de bordo da sua própria e imaginada caravela, publicando-os depois de bem revistos e literaturizados. Mas estes textos não são propriamente “memórias”, pois estas pressupõem um certo distanciamento no tempo em relação aos acontecimentos narrados.

          Mas estamos a referir-nos a memórias de guerra, exercício também com alguma tradição entre nós, pelo menos desde as Guerras Napoleónicas, mas quase sempre de publicação demasiado tardia, como é o caso de alguns relatos das campanhas coloniais pós-Ultimatum. Em relação à primeira Grande Guerra, ainda aparecem relatos inéditos, como era o caso das Memórias de um Expedicionário a Moçambique (1917-1919), de José Pereira do Couto Soares, publicadas pela Confraria Queirosiana em 2016, as quais esperaram quase um século para serem divulgadas, ou das memórias da participação no teatro de guerra europeu de Francisco da Silva, enfermeiro hípico na 1.ª Guerra Mundial, escrito por Susana Guimarães a partir de arquivo familiar do dito e publicado na Revista de Portugal n.º 13 também em 2016.

Mas agora a nossa urgência civilizacional reclama que as memórias da guerra se soltem nos nossos dias. Para repouso da mente e da reconciliação com o passado recente em que se unam, ainda que no esconjuro da desgraça, os que foram seus responsáveis como mandantes (alguns ainda vivos), outros protagonistas e outros apenas como espectadores, nomeadamente a maioria das mulheres daqueles tempos. Se alguns há muito que tentaram lavar as mãos, ninguém da minha geração as tem limpas deste assunto. E temos consciência disso. 

J. A. Gonçalves Guimarães

secretário da Confraria Queirosiana


A Confraria Queirosiana brinda à Academia Alagoana de Letras no celebração do Acordo entre as duas instituições; 
foto Maria de Fátima Teixeira

Acordo de Cooperação Luso-Brasileiro

Como foi anunciado na página anterior, no passado dia 12 de maio, via Zoom, foi assinado um acordo de cooperação entre a associação Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana e a Academia Alagoana de Letras (AAL). Assim, entre as dezanove e as vinte horas (15 e 16 no Brasil), a partir do auditório do Solar Condes de Resende, foi partilhado o seguinte programa, conduzido pelo secretário da direção J. A. Gonçalves Guimarães, acompanhado pelo presidente da direção, José Manuel Tedim, vogais Amélia Cabral, António Pinto Bernardo, e Manuel Moreira; presidente da assembleia geral César Oliveira; do conselho fiscal Fernando Rui Soares; os investigadores do Gabinete de História, Arqueologia e Património, Maria de Fátima Teixeira, Licínio Santos e Cristiana Borges, que asseguraram a parte técnica; em representação do Município de Vila Nova de Gaia a vereadora da Cultura e também confrade, Paula Carvalhal. Também presentes, via Zoom, o vice-presidente Luís Manuel de Araújo e o vogal da direção Manuel Nogueira; o presidente do conselho fiscal Manuel Filipe, além de vários outros confrades. Perante uma numerosa delegação da AAL visível no écran do computador, a sessão abriu com uma saudação do seu presidente, Professor Doutor Alberto Rostand Lanverly que salientou a transcendência do momento para ambas as instituições e a Cultura Lusófona, a que se seguiu a leitura do Acordo pelo secretário da AAL, Doutor Diogenes Tenório Júnior, tendo o mesmo sido assinado por ambos os presidentes em cópias previamente cruzadas. Seguidamente proferiu uma saudação o Prof. Doutor José Manuel Tedim, e a Eng.ª Paula Carvalhal em nome do município gaiense.

O momento literário do programa foi anunciado pelo alagoano Dr. Marcelo Malta, também ele confrade queirosiano, que apresentou o jubiloso ator Chico de Assis, que declamou o texto “O Povo” de Eça de Queirós e depois uma composição em verso de Jorge de Lima.

Do lado de Portugal os confrades presentes cantaram o Hino da Confraria (a Rosa Tirana, com versos atuais de António Rua), pela primeira vez apresentado como Hino dos Vencidos da Vida num jantar em casa do Conde de Arnoso, em Lisboa, a 21 de maio de 1889. Desta vez, com acompanhamento ao piano por Maria João Ventura, do grupo cantante Eça Bem Dito, a que se seguiu um brinde aos académicos alagoanos apresentado por César Oliveira com o Porto 20 Anos “Confraria Queirosiana” produzido pela Quinta da Boeira.

A sessão encerrou com as palavras do sócio da AAL, Doutor Carlos Barro Mero, fazendo votos para que a Acordo agora assinado passe a ser um instrumento permanente de união de propósitos culturais entre os dois lados do Atlântico.

Entre outras divulgações a assinatura deste Acordo foi noticiada a 15 de maio nos jornais Gazeta de Alagoas, pelo jornalista Maylson Honorato, com chamada à primeira página, e em O Gaiense, pela jornalista Filipa Júlio.


Alberto Rostand Lanverly, presidente da AAL, exibe o Acordo assinado.

História-Património-Turismo

Pela Academia Eça de Queirós prossegue a preparação do 29.º curso do Solar Condes de Resende a iniciar no próximo mês de Outubro, coordenado por J. A. Gonçalves Guimarães e José Manuel Tedim, desta feita subordinado ao tema “Turismo - História – Património”, o qual decorrerá ao longo de 13 sessões de duas horas cada, em modo presencial e por videoconferência, entre as 15 e as 17 horas. Estão já definidas as áreas a abordar, desde ao origens históricas do Turismo até à sua importância económica, social, cultural e até geopolítica dos dias de hoje, passando pelos “turismos” religioso, literário, militar, hoteleiro, gastronómico, enófilo, musical e outros, abordados por especialistas nas várias matérias, alguns dos quais docentes em vários estabelecimentos do Ensino Superior. Aceitaram já serem professores neste curso, para além dos coordenadores, Nuno Resende e Barros Cardoso da FLUP, Sérgio Veludo Coelho da ESE/IPPorto, e Maria de Fátima Teixeira do GHAP, aguardando-se a confirmação de outros professores convidados.

Livros e Autores

       Estando em curso as comemorações dos 200 anos da Revolução de 24 de Agosto de 1820 que introduziu Portugal na Época Contemporânea, as suas consequências levaram à guerras civis entre liberais e absolutistas que só terminaram com a Convenção de Gramido de 29 de junho de 1847. O momento alto dessas movimentações militares foram efetivamente os sítios à cidade do Porto em 1828, onde se acantonou a revolta militar de Aveiro organizada pelo juiz Teixeira de Queirós, bisavô de Eça de Queirós, e em 1832-1833, o denominado Cerco do Porto, cidade onde se tinha refugiado o exército de D. Pedro, e no qual desempenhou um especial papel estratégico o Mosteiro da Serra do Pilar em Vila Nova de Gaia, baluarte inconquistável encravado nas linhas miguelistas.

          Estes combates foram travados por militares de carreira e milicianos, conscritos, voluntários e mercenários em ambos os lados. Sérgio Veludo Coelho, professor de Património e investigador de História Militar, um dos melhores especialistas desta área e período, acaba de publicar Guerra Civil 1828-1834. Tropas & Uniformes. Porto: Fronteira do Caos, 2021, obra muito ilustrada com gravuras da época, complementadas com desenhos dos uniformes, armas e acessórios, rigorosos do ponto de vista histórico, mas também graficamente muito apelativos nas suas cores, de todos os corpos militares, de oficiais, sargentos e praças e estandartes de ambos os exércitos, também de sua autoria. De entre as ilustrações saliente-se, por geralmente pouco conhecido ou referido, o célebre canhão-obus Paixhans, o “Mata-Malhados”, colocado no cimo do Castelo de Gaia para bombardear o Mosteiro da Serra do Pilar e assim tentar daí desalojar os defensores liberais.

          Uma obra fundamental sobre os protagonistas, dos quais ainda hoje existem descendentes que quererão honrar a memória dos seus antepassados que acreditavam naquilo por que lutaram. Esta obra terá em breve uma edição inglesa.

Prémio das Artes Decorativas

No próximo dia 27 de maio, pelas 17 horas, será entregue pelo Doutor Francisco de Olazabal, no Museu Soares dos Reis, o prémio das Artes Decorativas Dr. Vasco Valente, instituído pelo Círculo Dr. José de Figueiredo, em homenagem ao primeiro diretor da instituição, e desde 2017 patrocinado pela Quinta do Vale Meão (Francisco de Olazabal & Filhos, L.da). O júri da edição de 2019, atribuiu o prémio à Mestre Diana Felícia Pinto, pelo seu trabalho “De Campanis Fundendis – A Fábrica de Fabrico de Sinos de Rio Tinto”.

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Eça & Outras, III.ª série, n.º 153, terça-feira, 25 de maio de 2021; propriedade da associação cultural Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; C.te n.º 506285685; NIB: 0018000055365059001540; IBAN: PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com; www.queirosiana.pt; confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J. A. Gonçalves Guimarães (TE-164 A); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia Cabral.

 

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