A escrita da História
Mas então só os historiadores podem
escrever sobre História? Numa sociedade livre e democrática não pode qualquer
cidadão escrever sobre o que lhe dá na real gana? Há censuras, restrições
corporativas? Depende. Experimentem fazer essas mesmas perguntas ou colocar
essas mesmas questões mudando historiador para jurista sobre Direito, médico
sobre Medicina, engenheiro sobre Engenharia, arquitecto sobre Arquitetura e
terão logo metade da questão aclarada e a resposta dada. Mas sem esquecerem que
existe a História do Direito, a História da Medicina, a História da Engenharia,
a História da Arquitetura (ou, mais ampla, a da Arte). Aí responderia que
talvez seja melhor os profissionais encontrarem-se e trabalharem em
colaboração, unindo saberes e metodologias. Uma coisa é escrever sobre uma
ciência humana, outra escrever versos, desabafos, opiniões, crónicas, memórias.
Ou glosar ciência alheia em textos síntese.
Mas isso é na estrita esfera dos saberes próprios de cada ciência. E na divulgação, na decomposição das grandes questões em explicações acessíveis aos não especialistas, aos alunos das escolas, ao público em gertida, achar-se que se podem alargar os furos do cinto do rigor quando se trata de divulgaral, podem outros, que não os historiadores, escrever sobre História? Direi que depende dos objetivos e da honestidade das metodologias a aplicar. Não é lícito, logo à pação e que se pode atrair o público misturando factos históricos com invenções ou delírios ficcionais. Quando tal acontece, se foi feito por historiadores profissionais, devem os mesmos ser corrigidos pelos seus pares; se tal for feito por outros profissionais, há que criticá-los na praça pública e se os seus relatos deliberadamente falaciosos estiverem ao serviço de entidades que com isso ganham dinheiro, há que denunciá-los às entidades de defesa do consumidor por estarem a vender um “ bacalhau podre” como se fora de boa qualidade. Se tal acontece num supermercado com os produtos alimentares, porque não pode acontecer com os “alimentos do espírito” que tão importantes são para a coesão das comunidades?
Podem
(ou devem) então outros profissionais, nomeadamente os jornalistas, escrever
sobre História? Depende, e logo em primeiro lugar, se estão ou não a roubar o
trabalho aos historiadores. Nesse caso não podem nem devem. Mas o melhor é
analisar dois exemplos relativamente recentes, um aceitável e outro mau.
Como
se lembram, no ano 2000 voltaram à conversa as velhas superstições
milenaristas, que antes de mais se esquecem que a “era cristã” nem sequer é
universal. Dois jornalistas ingleses, Robert Lacey (formado também em História)
e Danny Danziger, cavalgando a onda do interesse do público pelo assunto,
escreveram o livro Ano 1000. Como se vivia na viragem do primeiro milénio, editado
em Portugal pela Campo das Letras. Para tal serviram-se de um manuscrito, o
Calendário Juliano de Trabalhos da Catedral da Cantuária, escrito por volta de
1020, no qual cada folha foi adornada com preciosos desenhos referentes às
atividades próprias de cada mês. E a partir daí compuseram uma narrativa
jornalística da época, mas muito bem fundamentada em excelente bibliografia
historiográfica (que divulgam em notas e no final), tendo ainda o cuidado de
consultarem muitos especialistas em Idade Média, arqueólogos e documentalistas,
a quem pediram para lerem e corrigirem o seu texto antes de o publicarem, e
cujos nomes constam nos agradecimentos finais. Eles próprios declaram que não
escreveram um livro de História, mas sim um livro que incluísse as suas
perguntas «a alguns dos mais eminentes historiadores e arqueólogos», criando
assim uma obra tão agradável de ler quanto rigorosa nas múltiplas abordagens ao
tema e remetendo quem quiser saber mais para as obras da especialidade
consultadas.
Agora
o mau exemplo. Português, para meu desgosto. Publicou recentemente a Visão
Biografia o seu número 5, referente a julho/ setembro, dedicado a Eça de Queiroz. O génio da escrita,
edição dirigida por Mafalda Anjos, licenciada em Direitoe jornalista, com um
numeroso grupo de colaboradores. Não obstante a Biografia ser um exercício da
História, não há entre eles um único historiador. E no entanto há ali não só
capítulos biográficos sobre Eça e outros contemporâneos, como sobre a sociedade
oitocentista, mas tudo muito pesado e déjà
lu, sem quaisquer referências bibliográficas, tudo aparentemente saído da
cabecinha pensadora destes não-historiadores. Mesmo quando, quase no fim, a
publicação nos quer apresentar uma bibliografia queirosiana, não só faltam nela
obras fundamentais, como a terceira edição do Dicionário de A. Campos Matos (apresentam a 2.ª do ano 2000!), como
incluíram a hoje quase inútil Vida e Obra
de Eça de Queiroz, de João Gaspar Simões, na versão de 1973. Sobre a
Geração de 70 continuam a transmitir a ideia errada de que a mesma só era
composta por literatos (ou pior ainda, de que no Portugal do tempo de Eça todo
o conhecimento se reduzia ao dos literatos ou, vá lá, também a alguns
artistas). Depois a repetição, pela enésima vez, de alguns erros biográficos,
como o de que o escritor viajou «até ao Egito e Palestina com o futuro cunhado»
(p. 11; o 5.º Conde de Resende nunca foi cunhado de Eça, pois morreu antes dele
casar com sua irmã); que aquando dos jantares dos Vencidos da Vida o Marquês de
Soveral era «diplomata em Roma» (p. 70), quando o era em Londres há muito
tempo; segue-se a abundante, e também habitual, fantasia de confundir em
leituras primárias a ficção queirosiana (metáforas literárias por excelência)
com a realidade geográfica e factual da época, em várias páginas e artigos, e
nenhuma alusão a factos determinantes, como a invenção em 1878 da telescopia
elétrica, precursora da televisão, por Adriano de Paiva, seu condiscípulo em
Coimbra (sabendo-se a militante curiosidade de Eça pelos inventos da sua época);
ou mesmo a total omissão de factos fundamentais da sua vida e obra, como as
duas namoradas que conheceu em Cuba, uma dos quais que com ele se irá cruzar
mais tarde na Europa; a sua viagem aos EUA e ao Canadá «para ver o progresso»;
a sua defesa intransigente dos direitos dos coolies,
que deixou expressa num notável relatório só publicado em 1979, recentemente
levada ao cinema por Francisco Manso, o que nem sequer é referido nesta
publicação, embora lá se fale de outras versões cinematográficas. Para além de
alguns testemunhos pessoais, que são o que são e valem o que valem, e de
interpretações literárias de aspetos da obra por Carlos Reis e Isabel Pires de
Lima, esta publicação não tem pois qualquer interesse como descrição e
interpretação biográfica do escritor, pois, como já se disse, mesmo do ponto de
vista iconográfico, é um déjà vu. Mas
Eça continua a vender, mesmo o mais do mesmo.
«As
ciências históricas são a base fecunda das ciências sociais», escreveu Eça,
quando jovem (Prosas Bárbaras).
Obviamente que nada temos contra o bom jornalismo. Mas a História não é um
diletantismo jornalístico mas sim o estudo profissional persistente, sistemático,
descobridor e explicativo das acções humanas e dos diversos ramos do saber.
J. A. Gonçalves Guimarães
Mesário-mor da Confraria Queirosiana
Autores, livros e revistas
Um dos setores em franca recuperação nesta época de pandemia ativa é o da produção e divulgação do conhecimento escrito em livros e revistas. Mas para além da qualidade dos textos produzidos, começa agora a ser exigível a qualidade gráfica da obra publicada, cuja primeira preocupação deve ser, não a beleza do design, mas a facilidade de leitura. Um livro que ao ler canse o leitor por ter a letra demasiado pequena, imagens ilegíveis ou outras aberrações gráficas, não deve sequer ser editado. Os mínimos recomendados são letra corpo 12 e notas, legendas e bibliografia corpo 10, com imagens inteiras e legíveis, devidamente legendadas, E os direitos autorais referenciados e respeitados. Edita-se muito e isso é bom; exijamos agora qualidade para o prazer e utilidade da leitura.
Esboço 50 anos depois
Grande Prémio do Romance e Novela
Porto visto de cima
Geografia do Porto
Amigos de Gaia
Encontra-se em distribuição o Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia, n.º 90, referente a junho de 2020, com artigos de Jaime Milheiro, Virgília Braga da Costa e Salvador Almeida, entre outros.
Eça no Brasil
Palestras, conferências e workshops
No passado dia 11 de setembro pelas 21
horas, decorreu no espaço Porto CCD o encontro “Júlio Machado Vaz à conversa
com Jaime Milheiro” promovido pela Universidade Sénior Eugénio de Andrade.
Nos próximos dias 28 e 30 de outubro, Francisco José Viegas, editor e autor de romances policiais, vai realizar um workshop intitulado «À beira do abismo – uma introdução à Literatura Policial».
Vida académica
“Última
aula”
No próximo dia 28 de setembro pelas 16,50
horas no Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra, o Professor Doutor
Carlos Reis, catedrático daquela universidade e autor de notável obra sobre
Literatura Portuguesa na qual sobressaem os estudos queirosianos, proferirá a
sua lição de jubilação, a qual será também transmitida pelo sistema streaming através da ligação uc.pt/ em
direto.
Revolução de 1820
Com coordenação de Francisco Ribeiro da Silva e outros, encontra-se patente ao público desde 15 de julho no Museu da Misericórdia do Porto a exposição «A Misericórdia do Porto e a Revolução Liberal 1820-1834», a qual encerrará no dia 2 de novembro próximo.
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Eça
& Outras, III.ª série, n.º 145, sexta-feira, 25 de setembro de 2020;
propriedade dos Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; c.te n.º 506285685; NIB: 0018000055365059001540; IBAN:
PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com;
www.queirosiana.pt; confrariaqueirosiana.blospot.com;
eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J.
A. Gonçalves Guimarães (TE-164 A); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia
Cabral.
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