Museus como penitenciárias da História
As estátuas, como arte pública, não nascem
nas praças nem nos jardins das cidades e vilas. Se estão lá é porque alguém as
mandou aí colocar. Antes disso já terão percorrido um longo caminho, que
importa conhecer, entre a ideia e a inauguração. Podem ter sido a oferta da
bizarria pessoal de um benemérito, mas em todo o caso com a aprovação ativa ou
passiva da comunidade, da autarquia ou de um governo. Não, as estátuas não têm
vida própria, nem vão sozinhas para o pedestal.
Nestes dias de
pânico muita gente se interroga sobre a atual onda de destruição ou “correção”
da mensagem das estátuas. Mas, não só o fenómeno não é novo, como há exemplos
recentes que não incomodaram assim tanto nem causaram tantos indignados. Para
não recuar mais na História recente, vai para 20 anos que os "bem
pensantes" (aqueles que estão sempre de acordo com a corrente dominante), que
agora choram lágrimas de crocodilo pela destruição ou vandalização de algumas
estátuas, assistiram impávidos e serenos à destruição de outras, e de outros
bens culturais do melhor que havia, e também à sua roubalheira no Iraque,
promovidas por um exército internacional patrocinado por um chefe de estado
chamado George Bush, mancomunado com mais alguns outros governantes, e
"ninguém" se incomodou com isso. É que nessa época não foram os
espoliados da Terra, nem as vítimas centenárias do racismo, da descriminação e
da perseguição, nem os indignados do momento, nem os jovens irreverentes, nem
os oportunistas, nem os provocadores, nem os iconoclastas que tal fizeram. Foi
tudo "gente fina", engravatados nas embaixadas e cimeiras e fardados
no terreno, em defesa dos "valores ocidentais", que pelos vistos, e
quando lhes convêm, também são a favor da destruição ou vandalização de
estátuas e da roubalheira de bens culturais, desde que tal não seja feito por
pretos, esquerdistas, ou outros minoritários quaisquer, que, quando damos por ela,
são milhões em todo o mundo, mas que não têm “autorização” para tal. As
estátuas erguidas não foram feitas por eles nem para eles.
Sempre houve apeamento de
estátuas quando as civilizações mudam. Mesmo entre nós, já temos pouquíssimos
guerreiros galaico-lusitanos à entrada das povoações, substituídos que foram
por imperadores romanos, depois por reis cristãos, depois por “marqueses de
pombal”, “infantes d. henrique”, navegadores vários, santos diversos e recentemente
grande cópia de “senhoras de fátima” nuns cúbicos pagodes espalhados pelo país
por tudo quanto é aldeia. Mais recentemente as autarquias têm privilegiado os
ilustres desconhecidos locais, ou os “monumentos decorativos”, muito mais
“consensuais”, as mais das vezes sem qualquer conteúdo simbólico e muito menos
oficina: se em granito ou mármore, uns calhaus; se em liga metálica, sucatas
adiadas; se em materiais leves, metáforas temporárias a “E Tudo o Vento Levou”.
Também sempre houve estátuas que o não chegaram a ser: em Moatize, Moçambique,
dos anos setenta passados ficou um pedestal na ponte de Tete à espera da nunca
chegada estátua de Marcelo Caetano, conhecido político adepto de pontes que não
levavam a lado nenhum. Mas também pelo país fora temos algumas estátuas com
«tom baço e pálido de uma vela de estearina colossal e apagada» (Eça de
Queirós, O Primo Basílio) como a de
D. Pedro IV em Lisboa, que na fundição começou por ser Maximiliano do México e
que alguns guias de tuc-tuc do presente dizem aos turistas franceses ser a de
Napoleão!
Mesmo em nossas
casas temos estatuetas que já foram apeadas. Em vez do oratório da avó com o
seu “santo onofre” e o seu “santo padre cruz”, há quem tenha em étagères, ou semeadas pelas estantes dos
livros, representações de “s. salazar”, “s. lenine”, “s. buda”, “s. moisézinho”
ou “santa iemanjá”. Os mais eruditos “s. luís de camões”, “s. maozedong” ou
aquela jovem grega deficiente que dá pelo nome de “s. vénus de milo”. Estranha
“religião” esta, a da Cultura, muito dada a incongruências, e que em nome da
sensibilidade e da devoção quantas vezes abdica de análises mais exatas e
descomprometidas ou simplesmente se esquece de apontar que “o rei vai nu”.
Os velhos tiranos e os
velhos mitos representados pela Arte, apesar das mudanças, e para além delas,
continuam expostos nos museus. E se aí temos estátuas de Nero, sabendo-se menos
mal quem foi o retratado, ou de Calígula, também podemos ter a de um negreiro
ou de um colonialista qualquer com um cadastro carregado de crimes contra a
Humanidade. Talvez por isso até se possa vir a teorizar uma nova virtualidade
para os museus, que nestes tempos as demandam aflitos com a drástica diminuição
de visitantes, como uma reflexão sobre a existência destas instituições como
prisões póstumas ou penitenciárias da História onde se recolhem os facínoras em
estátua ou busto, em dado tempo apeados por multidões em fúria, ou simplesmente
substituídos por actualizações ideológicas, como desde os anos noventa passados
aconteceu nos países do Leste europeu. Quantos “s. lenines” e “s. estalines”
vandalizados ou apeados!
Ao contrário do que anda
para aí escrito, a destruição de estátuas, ou a sua vandalização, não são pois
apagamentos da História ou da memória, mas sim a sua questionação. E a História
não é o cemitério da Humanidade, mas sim uma ciência viva e constantemente em
revisão. Por isso os historiadores sabem que o povo, que lá vai sobrevivendo de
mudança em mudança, é muito mais eterno do que as estátuas que se vão erguendo
e que apenas se mantêm no pedestal enquanto não muda a civilização que
representam e que as incensa, quantas vezes para diluir o cheiro a sangue que
muitas delas ainda recordam.
Apesar de tudo
isto alguma sorte têm os escultores que as esculpem ou modelam. Para além de
tal lhes ter assegurado em vivos o pão da profissão, quantas vezes, séculos
depois, ainda lhes arrecadam as estátuas nos museus onde as vamos visitar. É aí
que muitas vezes, na admiração pela mestria do artista, esquecemos por momentos
as desgraças da condição humana que tantas delas representam, ficando-nos pelas
mais inócuas divagações da História da Arte, o seu estilo, volumetrias e outras
mais valias artísticas.
Por formação,
por profissão, por convicção, e até por respeito para com os seus autores (mas
nem sempre para com os promotores e os homenageados) sou contra o apear de
estátuas ou a sua vandalização. De todas e de qualquer uma delas, até porque
sempre podem ser usadas para pedagogicamente servirem de tema para uma boa
lição de História. Mas não posso ignorar que sempre houve apeamento de estátuas.
nem deixar de procurar responder às interrogações sobre os seus porquês. E bem
podem crer que nestes atos a que agora assistimos bem vai a mudança da nossa
civilização.
J.
A. Gonçalves Guimarães
Mesário-mor
da Confraria Queirosiana
As Artes Entre As Letras
Como indicamos no número anterior, o
jornal As Artes Entre As Letras
publicado no Porto completou 11 anos de existência, nas atuais condições
sanitárias sem a habitual sessão comemorativa, mas com um número especial (n.º
267 de 27 de maio) sob o lema «A Cultura como Substantivo». Para além dos
muitos colaboradores habituais, destaque para o editorial “Entre Sentidos” da
sua directora, Nassalete Miranda, que nos fala do trajeto percorrido desde 22
de maio de 2009 na interpretação da Cultura, que continua a desejar coletivo,
livre, tolerante unificador, resistente e afetivo. Guilherme de Oliveira
Martins escreveu “Contra Ventos e Marés”, dissertando sobe a resistência desta
publicação à destruição da Cultura e a oportunidade que a presente pandemia nos
dá para refletirmos sobre o que fazer para corrigir os erros globais de um
passado muito recente. Na página 9, o texto “Não Quero a Liberdade das
Gaivotas” de J. A. Gonçalves Guimarães na presença mensal da Confraria
Queirosiana. E muitos outros. Entretanto o n.º 268, de 10 de junho regressou à
normalidade das edições também em papel, dedicado ao «Dia de Camões. A Língua
Portuguesa».
Livros e Autores
Continua em publicação pela Imprensa Nacional a coleção «Edição Crítica das Obras de Eça de Queirós», dirigida e coordenada pelo Professor Doutor Carlos Reis, que se propõe disponibilizar aos estudiosos e aos leitores em geral os textos de Eça expurgados de acrescentos e erros que lhe são alheios, embora divulgando as diferentes versões e correcções com que o próprio escritor os trabalhou. O seu lema poderia ser “A Eça o que é de Eça”, tarefa difícil e não isenta de percalços que se adivinham, mas que se podem tentar contornar criticamente. Acaba de ser publicado o 18.º volume desta colecção, intitulado Textos de Imprensa II (do Distrito de Évora), organizado por Ana Teresa Peixinho, Professora Auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o qual apresenta os textos do escritor publicados no bissemanário Distrito de Évora aquando da sua estadia na capital alentejana a dirigir este periódico em 1867, aos vinte e dois anos de idade, durante sete meses. Apesar do regionalismo do meio de publicação, estes textos abordam não apenas questões locais, mas também nacionais e internacionais, quantas vezes com uma ousadia de opiniões e concepções da vida e da sociedade que ainda hoje nos surpreenderão.
ASCR - Confraria Queirosiana
No próximo dia 30 de junho, a partir
das 18 horas, decorrerá no Solar Condes de Resende a assembleia geral eleitoral
dos sócios da associação Amigos do Solar Condes de Resende – Confraria
Queirosiana para eleição dos corpos gerentes para o mandato de 2020 a 2024, a
que concorre uma lista proposta pela anterior direcção. Pelas 21 horas no mesmo
dia e local decorrerá a assembleia geral ordinária dos sócios da mesma
associação para a apresentação do Relatório e Contas referente ao ano de 2019,
a qual, devido às condições sanitárias do país, ainda não tinha sido realizada.
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Eça &
Outras, III.ª série, n.º 142, quinta-feira, 25 de junho de 2020; propriedade
dos Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; C.te n.º 506285685; NIB:
0018000055365059001540; IBAN:
PT50001800005536505900154; email:
queirosiana@gmail.com;
www.queirosiana.pt; confrariaqueirosiana.blospot.com;
eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J. A.
Gonçalves Guimarães (TE-164 A); redação: Fátima Teixeira; inserção: Licínio
Santos.
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