O haxixe na vida de Eça e de outras
pessoas.
O haxixe é um
estupefaciente proveniente das flores fêmeas da Cannabis sativa, variedade indica,
também conhecido como marijuana ou outras denominações. Fuma-se, bebe-se e
come-se. Durante a sua viagem com o conde de Resende ao Egito em 1869, Eça de
Queirós, então com vinte e quatro anos, experimentou no Cairo o haschich e partilhou a descrição dos seus
efeitos com os amigos em Lisboa, para quem aliás ambos trouxeram aquela
substância em geleia, bolos e pastilhas para fumar. Dir-se-ia que tal era então
uma moda entre a intelectualidade europeia, cansada que estava dos champagnes, dos charutos, dos absintos.
O café ia então num crescendo. Nem Eça ficou viciado e se alguma vez ficou drogado, tal deveu-se, não tanto ao
haxixe, mas aos medicamentos que, mais tarde, passou regularmente a tomar e a
variar, conforme as prescrições médicas que procuravam acertar nos seus
padecimentos intestinais e combatê-los, com raro sucesso ou alívio, como é
sabido. Durante as dores, os crescimentos
que de quando em vez o acometiam de forma insuportável, deve ter muitas vezes
suspirado pelo haxixe cairota, mas creio que então este não chegava facilmente
a Lisboa. Se tivesse a cannabis ali à
mão, plantada no quintal, sempre poderia ter passado melhor com as suas
enfermidades. Mas no Portugal de então, além do chá de tília, pouco mais havia
na velha farmacopeia para aliviar as suas dores e sofrimento. Mas também não
podemos agora emendar a História e o que passou, passou.
Presentemente
tem-se discutido na Assembleia da República a legalização do consumo da cannabis para fins terapêuticos e não
recreativos, como eles dizem, criando
assim mais um muro artificial e inútil, desta vez semântico, entre o
divertimento e a terapia, como se tal fosse possível. Uma boa parte da
Humanidade e os pensantes de todas as épocas terão concluído que tal não o é.
Ao fim e ao cabo todas as eficientes terapias para todas as nossas doenças e
enfermidades, que outro objetivo terão senão pôr-nos aptos para o exercício
normal da vida, o qual inclui por certo o recreio, a diversão, a
convivialidade? Para que quereremos a “saúde”, ou a ausência de doenças e
enfermidades, senão para viver a vida o melhor possível? Haverá alguns que
ainda pensarão que o vida é, ou deve ser, fardo e sofrimento, mas suponho que
os psicanalistas já os terão catalogado e, muito humanamente, proposto algumas
terapias para esses infelizes, quiçá
à base da atualmente discutidíssima cannabis,
que para eles já tarda. Porque da auto-flagelação, ou da auto-justificação, à
perseguição do bem-estar, ou pelo menos, do sossego dos outros que não estão
para aí virados, vai apenas uma pequena distância de oportunidade. E todos
sabemos, pelo menos pela História, o que tal significa.
Desde
tempos muito remotos que a humanidade descobriu que algumas plantas e seus
derivados tinham propriedades alucinógenas, isto é, capazes de pôr os que as
consumiam a ver e a sentir o banal em maior e diferente escala, ou até a ver,
sentir, cheirar e usufruir daquilo que só a imaginação cria e que nunca foi
real. Poderíamos aqui invocar o consumo habitual do “pão do diabo” por Jerónimo
Bosch, um pão de centeio com cravagem, o LSD natural, que o levou a pintar
aquelas maravilhosas alucinações que hoje os grandes museus exibem com orgulho
e as leiloeiras invejam. Supomos que as polícias já o deixaram em paz e que a
justiça não o quer levar a tribunal por consumo de drogas, até porque ele já
morreu em 1516. Dos derivados de plantas usados para fins recreativos, ou seja,
não necessários à alimentação nem à saúde, atualmente ainda se consomem legalmente quatro, embora dois deles
muito perseguidos pela legislação e por um puritanismo exacerbado: referimo-nos
ao vinho, uma bebida preparada a partir de uvas da Vitis vinifera fermentadas, com cerca de 11 a 13º de álcool por 100
ml, completamente perseguida em algumas sociedades pela sua capacidade de dar
alegria às pessoas; o tabaco, as folhas secas da planta Nicotiana tabacum, por inalação do fumo da sua combustão, perdidos
que estão no Ocidente os hábitos de o mascar e snifar (rapé); o café, uma
infusão dos grãos torrados da Coffea
arabica e outras plantas afins, tomado como estimulante. Por fim o
cacaueiro, a Theobroma cacao, sob a
forma de chocolate. Depois existem um sem número de sucedâneos de bebidas a
partir de outras plantas, como a cerveja, de inalações de derivados de outras
plantas, como o sagrado incenso, e de estimulantes orgânicos, como a Camellia sinensis (chá) e outras
centenas ou milhares de infusões. A partir do século XIX, após a síntese
química das moléculas ativas e da sua replicação artificial, o número de
produtos terapêuticos e de estimulantes tornou-se exponencial e nem sempre
controlado pela indústria farmacêutica, que muitas vezes vende a substância
base, mas já não controla as suas combinações. Mas para os seus efeitos terá
sempre um antídoto legal, de modo que o lucro está sempre garantido em todo o processo,
se não à partida, de certeza à chegada, quanto mais não seja pago pelo Estado,
que em última instância tem de tratar do intoxicado. E tudo isto por quê?
Porque, antes de mais, de um modo geral, é bom, sabe bem, dá alguns momentos de
felicidade real ou imaginária, resolve os problemas físicos e psíquicos no
imediato, mesmo depois do consumidor ter abusado por excesso. A psicose de
infringir a lei vigente, a ordem, o status, sempre foi um dos motores da
História, que dá a sensação de se ter um pouco mais do paraíso proibido na
Terra. Ora, paralelamente à descoberta das plantas estupefacientes, ou
simplesmente estimulantes, também ocorreu a tentativa de apropriação dos seus
paraísos pelas religiões e pelos sistemas de governação, para o darem em exclusivo
aos seus crentes, aos seus fiéis, sob forma controlada e com pagamento de
retorno assegurado. Ainda estamos nesse estádio e é isso que andam a fingir que
discutem alguns dos nossos deputados, esquecendo que hoje somos todos, ou quase
todos, drogados por drogas legais que
nos mantêm a qualidade de vida.
Refletindo
sobre o mundo e os seus achaques, e tropeçando nas humanas atitudes, quer
individuais quer coletivas, muitos dos escritores e outros artistas do passado
e do presente conheceram diversos estupefacientes e experimentaram-nos ou
consumiram-nos, como foi o caso de Eça de Queirós. Se é certo que uma boa parte
das suas personagens ainda se embebeda, charuteia ou fuma cigarro, e bebe café,
do seu consumo de haxixe, comprovado por, entre outros, Jaime Batalha Reis, não
ficou memória literária direta. E se de tal poderá ter sucumbiu o seu
companheiro de viagem, o conde de Resende, tal não poderemos afirmar, sendo
certo que morreu novo e com “visões místicas” (MONCÓVIO, 2016: 25).
Tirando
o vinho, o tabaco, o café e o chocolate que consumimos são importados. Muitas
das drogas legais em Portugal (fármacos e não só) são importadas. Quase todas
as drogas ilegais em Portugal, à excepção da cannabis, são importadas. O controlo policial e social destas últimas
falhou e continuará a falhar. Convém pois reequacionar este assunto a partir de
dados humanitários e do bom senso. Está provado que não se combatem as drogas
proibindo-as ou criminalizando os seus consumidores, deixando que os
fornecedores se substituam em cadeia, e nas cadeias. E se os drogados são doentes, o que só será
verdade a partir da evidência de efeitos nefastos e da irreversibilidade da
dependência, então tratemo-los com a dignidade que nos merecem todos os outros
dependentes de drogas, fármacos ou estupefacientes. Entre o consumidor
compulsivo de cannabis cultivada no
seu quintal e o de fármacos legais da farmácia da esquina, que venha o diabo e
que escolha. Eu sei em quem voto.
Declaração
de interesses: o autor deste artigo consome moderadamente vinho, café, cacau e
medicamentos legais. Não fuma, embora na juventude tenha teimado porque era
proibido no liceu, sem o conseguir. É também uma prova de que a propensão para
o uso imoderado do tabaco não é hereditária. Nunca consumiu cannabis ou qualquer outra droga ilegal,
embora as tenha tido disponíveis no tempo da tropa em Moçambique, não por “ser
melhor do que os outros”, mas porque, entre outros motivos, ter tido sempre
necessidade de se manter vigilante face ao status
quo circundante, e por, apesar de tudo o que tem passado, não estar
descontente com a vida, não precisar de “refúgios” para além da realidade, nem
querer “dar o flanco ao inimigo”, seja lá ele qual for. Conhece os sete
prazeres da vida e esses lhe bastam. Tem tomado alguns fármacos legais por
prescrição médica, alguns dos quais o ajudaram a superar um problema de saúde
grave. Acredita na eficiência da Medicina, mas sabe que a vida não existe por
receita médica, filosófica ou policial. Se a questão se pudesse pôr, nunca
colaboraria em qualquer perseguição a Eça de Queirós e seus amigos por terem
consumido haxixe nem, se fosse deputado, participaria nos dias de hoje na
elaboração de leis obsoletas ou inúteis contra tal consumo. Deixaria a sua
profilaxia para programas de educação e de reinserção social mais eficazes,
concretos e humanos. Se pudesse, a todos convidaria para tentarem viver num
mundo onde não se consumissem drogas dispensáveis, nem onde estas alimentam uma
boa parte da economia paralela, onde ombreiam com os tráficos de armas e de
pessoas.
Já li o
romance A Coca de J. Rentes de
Carvalho e gostei da abordagem do autor. Creio que, para além do seu grande
valor como obra literária, ajuda a perceber o fenómeno entre nós.
J. A. Gonçalves Guimarães
Mesário-mor da Confraria
Livros
e revistas
Revista de Portugal
A
Revista de Portugal n. º 14,
publicada no passado dia 25 de novembro, encontra-se digitalizada e disponível
em wwwqueirosiana.pt a partir de hoje. Embora a sua publicação habitual vá
continuar a ser feita em papel, é intenção da direção disponibilizar todos os
números já publicados neste sítio.
Encontra-se
em distribuição o n.º 85 do Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia
referente ao mês de dezembro de 2017, com artigos de, entre outros, GUIMARÃES,
J. A. Gonçalves – Biografias de
Mafamudenses ilustres; MONCÓVIO, Susana – Adelaide Lucinda Fontes (1871-1951) e Emília Ernestina da Silva
(1869-1952): a formação artística das senhoras Teixeira Lopes; e OLIVEIRA,
Nuno Gomes – Viveiros da Quinta da
Telheira, Santo Ovídio. A biodiversidade perdida.
Palestras,
cursos, congressos e outros eventos
Francisco Ribeiro da Silva e o Foral de 1518 |
Comemorações do Foral de Gaia de 1518
No
passado dia 19 de Janeiro tiveram início as comemorações oficiais dos 500 anos
do Foral manuelino de Vila Nova de Gaia com uma sessão solene no Arquivo
Municipal presidida pelo Prof. Doutor Eduardo Vitor Rodrigues, presidente da
câmara, ladeado pelos vereadores Eng.ª Paula Carvalhal e Dr. Manuel Monteiro.
Foi orador o Professor Doutor Francisco Ribeiro da Silva, ex-professor
catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que dissertou
sobre o conteúdo do documento no contexto da reforma manuelina. A sessão foi
abrilhantada com a atuação de um grupo de guitarra clássica do Conservatório de
Música de Gaia que tocou peças da época. Seguiu-se a abertura de uma exposição
evocativa, a qual tinha como ponto central o original do Foral, bem assim como
outros objetos da época ou a ela alusivos. Entre muitas das individualidades
presentes encontrava-se D. Henrique de Cernache, conde de Campo Bello,
descendente dos antigos senhores de Gaia-a-Grande e de Álvaro Anes e de Diogo
Leite referidos neste documento régio.
As
comemorações prosseguirão com um exposição de Artes Plásticas inspiradas no
Foral, organizada pela associação Artistas de Gaia e que abrirá no dia 24 de
março, e pela realização de um cortejo cívico que terminará com uma recriação
histórica e pelo lançamento da edição fac-similada do Foral, no próximo dia 30
de junho.
25 anos da Escola Diogo de Macedo
Com um vasto
programa de vinte e cinco eventos apresentado por Manuel Filipe de Sousa,
iniciaram-se no passado dia 19 de janeiro com um Concerto de Abertura pelo
Conservatório de Música do Porto realizado na Igreja de Crestuma, Vila Nova de
Gaia, completamente cheia, as comemorações dos 25 anos da AEDMO – Agrupamento
de Escolas Diogo de Macedo. Os estantes eventos, que incluem exposições,
conferências e edição do jornal Face ao
Douro, decorrerão ao longo do ano com a colaboração de diversas
personalidades e instituições.
Últimas Quintas do Mês
Noje, no Solar
Condes de Resende, prosseguindo o programa das palestras das últimas
quintas-feiras do mês, pelas 21,30 horas, J. A. Gonçalves Guimarães falará sob
o tema «Toponímia gaiense: introdução ao seu estudo» em que abordará, entre
outros, os topónimos do Foral quinhentista. No próximo mês de fevereiro, dia
22, no mesmo local e à mesma hora o mesmo investigador falará sobre «Portucale
entre suevos e visigodos».
Curso de Património Cultural de Gaia
Prossegue no próximo sábado no Solar Condes de
Resende o curso sobre o Património Cultural de Gaia, com uma aula sobre o
Património Institucional pelo Prof. Francisco Barbosa da Costa. Em fevereiro
dia 3 será a vez do Professor Doutor Gonçalo de Vasconcelos e Sousa sobre
Património Humano – Personalidades e no dia 17 sobre Património Edificado pelo
Prof. Doutor Nuno Resende.
Depósitos e doações
Pelo Dr. Marcus
Vinícius Cocentino Fernandes, médico radiologista, foram entregues à Confraria
Queirosiana mais 20 livros e uma fotografia do espólio da Dr.ª Júlia Cunha, a
juntar aos 89 itens já doados desta discípula dileta de Teófilo Braga, o qual
tem vindo a ser estudado pelo Prof. Doutor José António Martin Moreno Afonso da
Universidade do Minho, contando já com um primeiro artigo intitulado «Memórias
dos anos de formação de uma professora portuense na década de 1920» apresentado
no Congresso Internacional “O Tempo dos Professores”, que decorreu no Porto
entre 28 e 30 de setembro de 2017, organizado pela Faculdade de Psicologia e
Ciências da Educação da Universidade do Porto.
S. Gonçalo, séc. XVIII; propriedade da Associação Os Mareantes do Rio Douro. |
A propósito da
romaria de S. Gonçalo que decorreu em Gaia no passado dia 14 de janeiro, a
Associação Os Mareantes do Rio Douro depositou no Solar Condes de Resende, para
estar exposta, uma imagem do século XVIII daquele taumaturgo amarantino
medieval que antigamente era usada no seu cortejo votivo até à igreja de
Mafamude, a qual, entretanto foi substituída por uma outra mais recente.
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Eça
& Outras, III.ª série, n.º 110 – quinta-feira, 25 de janeiro de 2018;
propriedade dos Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; C.te. n.º 506285685; NIB:
0018000055365059001540; IBAN:
PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com; www.queirosiana.pt; confrariaqueirosiana.blospot.com;
eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J.
A. Gonçalves Guimarães (TE-638); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia
Cabral; fotografia: Carlos Sousa e Susana Guimarães.
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