Eça & Outras,
domingo, 25 de dezembro de 2016
Afinal
qual é “a nossa terra”?
Os cristãos, e de um modo geral o mundo
ocidentalizado a partir da civilização mediterrânica, celebram tradicionalmente,
três dias depois do solstício do Inverno, o nascimento de Jesus em Belém,
também conhecido como Jesus de Nazaré
ou Jesus da Galileia, duas povoações
e uma região da antiga Palestina. Mas nunca é dito como Jesus de Jerusalém. E no entanto esta cidade é
o lugar maior da sua biografia. Este exemplo, de todos conhecido, apresentamo-lo
aqui para reflectirmos sobre qual é afinal a nossa terra, se aquela onde vimos
pela primeira vez a luz do dia, ou se aqueloutra que depois escolhemos ou nos
calha nas sortes ou azares da vida. Ou se a que nos adopta, quando temos alguma
importância para tal. E se, seja ela aldeia ou metrópole, nos contentamos com a
sua história verdadeira ou se para ela preferimos mitologias engrandecedoras,
que quantas vezes apagam singelas e úteis virtudes cívicas.
De muitos dos grandes humanos não
sabemos sequer onde nasceram. Veja-se o que aconteceu quando a investigação
histórica se debruçou sobre o berço de D. Afonso Henriques, mudando-o de
Guimarães para Viseu. Camões é também um desses casos: dão-se-lhe terras,
cidades, vilas, aldeias de nascimento e de itinerário em Portugal, em África,
na Índia e outras partes, algumas sabe-se que ficcionais, mas com monumentos a
celebrar a sua passagem, se não em vida, certamente na imaginação de alguém
depois que morreu. E não inventou ele “ilhas dos amores”? A sua biografia não
coincide pois com a sua mitologia. Não é caso único e muito menos raro. Sobre
Eça de Queirós disse e escreveu sua mãe que ele lhe nasceu na Póvoa de Varzim:
mas há quem o queira nascido em Vila do Conde ou até em Aveiro e morador em
Baião. Camilo, tão do Porto ou do Minho, nasceu afinal em Lisboa. A outros
constroem-se-lhes maternidades em terras que nunca a mãe viram, como tem sido o
caso de Fernão de Magalhães. E tal como existem mais de duas catedrais que
dizem possuir o crânio de um só e mesmo santo, também a várias personalidades
se lhes apontam várias terras natais. Santo António é de Lisboa para os
Portugueses, de Pádua para os Italianos, não pelo nascimento mas pelo percurso
de vida.
Para
seres mais comuns e em tempos mais recentes, a partir da proliferação dos
estabelecimentos de saúde nas cidades, o local de nascimento deixou de ser a
casa materna e passou a ser uma realidade administrativa que falseia as
estatísticas. Em tempos, na Maternidade Júlio Dinis no Porto, “nascia-se”
alternadamente, conforme os dias da semana, numa ou noutra freguesia limítrofe,
para as impertinências da vida não cansarem em demasia uns ou outros dos seus
funcionários. Agora pode oficializar-se que se nasceu na morada da mãe, ainda
que a mesma diste cem quilómetros do verdadeiro local do parto, que pode
acontecer a bordo de um helicóptero ou de uma ambulância do INEM. Um problema
para os historiadores biógrafos do futuro. E há muita gente que, tal como
Chopin, tendo nascido numa Zelazowa qualquer, prefere bacocamente dizer que
nasceu numa Varsóvia de prestígio. Feitios.
Nascidos então, muitas vezes a vida
muda-nos de terra, e é noutra bem diversa que nos fazemos ou acabamos como
gente. A primeira poderá ser sempre uma referência, sobretudo se a família a
que pertencemos lá tiver origens e memórias ativas. Veja-se Garrett que
escreveu no prefácio da 1.ª edição de O
Arco de Sant’Ana: «Ora eu nasci no Porto e criei-me em Gaia». É pois lícito
ser-se de mais do que uma localidade. E nem será preciso filosofar-se agora
muito sobre a matéria pois sobre tal se legislou já em tempos antigos. No Foral
de D. Manuel de Vila Nova de Gaia, 1518, encontra-se esta clara definição: «E
para se saber quais serão as pessoas que são havidas por vizinhos dalgum lugar
para beneficiarem da liberdade dele, declaramos que por vizinho dalgum lugar se
entenda o que for dele natural ou nele tiver alguma dignidade. Ou ofício nosso
ou do senhorio da terra, pelo qual razoavelmente viva e more no tal lugar, ou
se ali for feito livre da servidão em que era posto. Ou seja aí perfilhado por
algum morador e o perfilhamento por nós confirmado. Ou se tiver aí o seu
domicílio ou a maior parte dos seus bens com o propósito de ali morar. E o dito
domicílio se entenderá onde cada um casar e enquanto aí morar. E mudando-se
para outra parte com sua mulher e fazenda com intenção de se para lá mudar,
voltando depois não será tido por vizinho, salvo se morando aí de novo quatro
anos continuadamente com sua mulher e fazenda, e então será de novo tido por
vizinho. E assim o será quem vier com sua mulher e fazenda viver para algum
outro lugar, estando nele os ditos quatro anos. E além dos ditos casos não será
ninguém havido por vizinho de algum lugar…» (texto actualizado). Este sábio
princípio dos quatro anos mínimos de residência efectiva para se ser
considerado vizinho do lugar foi anulado pelo liberalismo, quando passou a
permitir que os “condes de abranhos” chegados de qualquer terra pudessem ser
candidatos a eleições locais, regionais ou mesmo nacionais, por um círculo
eleitoral bem distante do da sua terra natal e onde até nunca terão posto os
pés, a não ser nas vésperas da abertura das urnas. E o povo, como a história o
anota, vota neles, sobretudo nas cidades e vilas onde a população adventícia é
em maior número, ou tem mais força social, do que a dos naturais. Daí a haver
adeptos do Olhanense em Monção vai apenas um pequeno passo. Claro que também
existem os que, tendo nascido nas berças de Trás-os-Vales, mal se apanham seguros
no poder, compram uma vivenda na Quinta da Marinha, ou mesmo numa zona de
protecção da natureza perto da capital, confiantes de que o sistema político os
candidatará por qualquer outra terra, nem que seja pelas Berlengas, et voilà, aí temos o povo no poder!
Há
ainda um outro estranho fenómeno a considerar, complementar daquele outro: a
invenção ou perpetuação de mitologias locais pelos forâneos desenraizados. Mal
montam a sua banca na cidade onde chegaram, ei-los a reescrever ou a apadrinhar
a divulgação de lendas sobre a terra onde têm a nova morada, as quais a história
não abona, com cujas inverdades se indigna ou das ingenuidades se ri. E quase
sempre os vizinhos recentes são muito mais assanhados na defesa dessas fantasias
do que os indígenas. Poderíamos dar exemplos destas situações, mas elas são bem
conhecidas. E nem vale a pena, pois elas vão persistir: Verona continuará a
vender o seu balcão de Julieta, Santiago o seu apóstolo.
Tudo isto para nos ancorarmos na
memória dos nossos percursos de vida. Mas valerá a pena? Lembremos aqui as
palavras de Eça nas Cartas de Inglaterra:
«Não há nada tão ilusório como a extensão de uma celebridade; parece às vezes
que uma reputação chega até aos confins de um reino – quando na realidade ela
escassamente passa das últimas casas de um bairro».
As
terras a que pertencemos são afinal apenas o cenário da nossa maior ou menor efemeridade:
e mais do que as memórias, as vontades de cada tempo fazem o resto.
J. A Gonçalves
Guimarães
Mesário-mor da Confraria Queirosiana
Livros & Revistas
João
Nicolau de Almeida
João Nicolau de Almeida com o seu livro. |
O enólogo esteve presente no dia 21 de dezembro no magnífico
almoço de Natal que todos os anos a administração da Casa Ramos Pinto celebra
com algumas personalidades ligadas ao mundo dos Vinhos, da Arte e da Cultura,
durante o qual foi feito um brinde ao atual secretário geral das Nações Unidas,
Eng. António Guterres, o primeiro ministro que suspendeu a barragem que ia
afogar a Arte Paleolítica do Côa, tendo visitado a Quinta de Ervamoira em 1996,
onde então se inteirou do projeto para a criação do seu Museu de Sítio
inaugurado a 1 de novembro do ano seguinte e que desde então acolhe visitantes
à procura de lugares de exceção.
A
Ira de Deus sobre a Europa
Publicado
pela primeira vez nos Países Baixos em 2008 com o título Gods toorn over Nederland (A Ira de Deus sobre a Holanda), ao
contrário de a maior parte dos seus livros anteriores este foi então muito mal
recebido, por vir denunciar o politicamente correcto que, segundo J. Rentes de
Carvalho, está a destruir a Holanda e a Europa, avassalada por uma onda de
gentes e interesses que, na melhor das hipóteses, não lhe trazem nada nem coisa
nenhuma, mas que a coberto da lassidão dos burocratas vão instalando os
fundamentalismos vindos com as fomes e as ignorâncias de outras latitudes. Não
se trata, obviamente, de propor uma nova batalha de Poitiers, como pretendem os
belicistas, que com as suas estúpidas estratégias apoiaram os estadunidenses
para mexerem no vespeiro do petróleo do Iraque e da Líbia, dando origem à
actual desgraçada vaga de refugiados que querem da Europa aquilo que ela sempre
foi, mas que hoje tem dificuldades em manter: uma terra de tolerância e de
esperança. Mas para tal terá de repensar a sua estratégia mundial e entender-se
internamente.
Alargando
agora a questão, a Quetzal acaba de publicar A Ira de Deus sobre a Europa – Testemunho de Um Meio Século (1956-2006),
com o texto inicial revisto e atualizado no prefácio pelo autor, que equaciona
igualmente o papel de Portugal nessa realidade hesitante que é a Comunidade
Europeia. Lá pela Holanda já há quem diga, oito anos depois, que afinal o texto
era uma séria reflexão sobre o que haveria de vir e hoje aí está. Lembra-nos um
outro livro, Estes Dias Tumultuosos
de Pierre Van Paassen, que também ninguém quis levar a sério antes da desgraça
de 1939-1945 ter batido à porta da Europa.
A
Amante Holandesa
Agora
em edição de bolso da Bertrand, para ler no comboio ou no avião, um dos
melhores romances de J. Rentes de Carvalho, publicado pela primeira vez em
Amsterdam no ano 2000 e já com várias edições em português, um delírio
obsessivo em ambiente transmontano, onde a fantasia e a realidade se casam em
insuperável narrativa. O autor, por entre as suas regulares estadias na capital
holandesa e em Estevais de Mogadouro prossegue entretanto a sua atividade
literária e de reflexão sobre a maneira de ser da Europa e de Portugal. Numa
recente visita que lhe fizemos confidenciou-nos que no próximo ano publicará,
pelo menos, mais uma obra sobre uma região de Portugal.
Cadernos
Culturais
Acaba de ser publicado o
n.º 9 da segunda série dos Cadernos Culturais. Lumiar – Olivais – Telheiras,
editados pelo Centro Cultural Eça de Queirós de Lisboa, dedicado aos 750 anos
da freguesia do Lumiar (1266-2016). Nas suas 475 páginas apresenta artigos de
Fernando Andrade Lemos (com Carlos Revez Inácio e José António Silva) sobre
“Apontamentos sobre as origens dos mitos – sobretudo no mundo ocidental” e (com
José António Silva e Pedro Sá Nogueira Saraiva) sobre “O painel de azulejos de
Gabriel del Barco existente na entrada nobre do palácio da Sociedade Histórica
da Independência de Portugal. Reflexões de hipótese no campo da Simbólica”; e
de César Veloso (com Vanessa Omena) sobre o “V Centenário da reconquista do
Maranhão” no Brasil.
Memórias
da Primeira Grande Guerra
No passado dia 10 de dezembro foi
apresentado no Ginásio do Torne em Vila Nova de Gaia o livro Memórias de um Expedicionário a Moçambique (1917-1919), de José Pereira
do Couto Soares, um relato da sua vivência pessoal prefaciado pelo jornalista e
historiador Manuel Carvalho, complementado pela sua antologia poética e por um
texto autobiográfico, tudo isto escrito num álbum que esperou quase cem anos
para ser publicado. Na ocasião, estando presentes vários descendentes e
familiares do autor, o livro foi apresentado pelo seu neto Dr. Rui Soares e por
J. A. Gonçalves Guimarães em nome da Confraria Queirosiana, a entidade editora.
Lendas
do Porto, volume IV
Prosseguindo na recolha
das narrativas lendárias do Porto e cidades vizinhas, Joel Cleto apresentou no
passado dia 15 de dezembro no Museu da Quinta de Santiago em Matosinhos o IV
volume de “Lendas do Porto” num lançamento enquadrado na Feira do Livro
Municipal daquela autarquia. Nestas obras o autor tem procurado que o leitor
consiga distinguir a possível verdade histórica das fantasias acrescentadas
pelos tempos e pelas gentes.
Cursos,
palestras, colóquios, jornadas…
Palestras
do Solar
Prosseguem
no Solar Condes de Resende as palestras das últimas quintas-feiras do mês.
Assim, no próximo dia 29 de dezembro, pelas 21,30 horas, o medievalista Dr. Paulo
Costa falará sobre “As comunidades gaienses nos reinados de D. Dinis e D.
Afonso IV. História e Património”; no dia 26 de janeiro, o contemporanista Dr. Licínio
Santos falará sobre “O mutualismo em Gaia: origens e evolução até ao tempo
presente”. Ambas as palestras decorrem da execução pelo Gabinete de Historia,
Arqueologia e Património do Projeto de levantamento, estudo e divulgação do
Património Cultural de Gaia (PACUG). A entrada é livre.
Curso
de História Naval do Noroeste de Portugal
Também
no Solar Condes de Resende prossegue este curso organizado com a colaboração da
Academia Eça de Queirós e certificado pelo Centro de Formação de Associação de
Escolas Gaia Nascente do Ministério da Educação. No dia 7 de janeiro o Professor
Dr. Álvaro Garrido da Universidade de Coimbra e diretor do Museu de Ílhavo
falará sobre A frota do bacalhau e o Museu Marítimo de Ílhavo, prosseguindo no
dia 21 com a pesca no Noroeste português pela Professora Doutora Teresa Soeiro
da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A frequência do curso implica
inscrição prévia.
Para o ano de 2017/2018 o
tema do curso do Solar será sobre Música & Músicos da região norte, numa
perspetiva da História da Música e da Musicologia.
Prémios
A
monografia “Rota do Românico”, da autoria de Lúcia Rosas, Nuno Resende e Maria
Leonor Botelho, editada em novembro de 2014, recebeu uma Menção Honrosa do
prémio A. de Almeida Fernandes 2016, destinado a galardoar estudos sobre
História Medieval Portuguesa. Esta obra descreve com rigor muitos dos
monumentos medievais de vários municípios do vale do Douro contemporâneos da fundação
da nossa nacionalidade.
Outros
eventos
Feiras
das Novidades e de Troca de Livros
A
Feira das Novidades do Solar Condes de Resende realiza-se no próximo dia 8 de
janeiro. A partir de fevereiro voltará a realizar-se no primeiro domingo de
cada mês. Também excecionalmente a Feira de Troca de Livros e outros objetos
culturais prosseguirá no terceiro domingo de janeiro, voltando depois a
realizar-se no segundo domingo de cada mês.
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Eça & Outras, III.ª série, n.º 97 – domingo, 25 de dezembro de 2016;
propriedade dos Amigos do Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; C.te. n.º 506285685;
NIB: 001800005536505900154 ; IBAN:
PT50001800005536505900154;
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queirosiana@gmail.com;
www.queirosiana.pt; confrariaqueirosiana.blospot.com;
eca-e-outras.blogspot.com; vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J.
A. Gonçalves Guimarães (TE-638); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia
Cabral; colaboração: Ana Filipa Correia (fotografia 1)
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