Eça
& Outras, terça-feira, 25 de fevereiro de 2020
O DIREITO A
UMA BOA MORTE
Recentemente em Portugal voltou a
discutir-se a eutanásia, cujo significado é, recorde-se, o «ato intencional de
proporcionar a alguém uma morte indolor para aliviar o sofrimento causado por
uma doença incurável ou dolorosa», ou «morte medicamente assistida pedida pelo
cidadão que a deseja». Na discussão gerada, que levou à aprovação pela
Assembleia da República da despenalização do ato médico que a concretiza, e que
segue agora para discussão na especialidade até aprovação final, muitas outras
definições foram produzidas, muitas delas segundo a “tática do polvo”, o
escurecer as águas para esconder as verdadeiras questões, ou a pretensão de que
os princípios humanos valem mais do que os humanos que os criam para seu bem.
Na realidade o problema é velhíssimo e situa-se em volta de duas questões: o
que é a vida e o que nela vale a pena para o próprio, para os outros e para a
comunidade; e se o cidadão tem direito a decidir quando deve dela “desligar-se”
e se, não sendo de tal capaz por incapacidade física ou mental, pode antecipar
essa vontade designando quem por si o faça em determinada altura e condições
que o entenda. Creio que estas são as duas grandes questões a debater, sendo o
resto “a tinta preta do polvo na poça de água da discussão”. Mas sobre estas
duas questões há ainda uma outra que talvez condicione toda a discussão sobre
elas: o que é que viemos “cá” fazer, e se a nossa passagem por esta vida deixa
um traço efémero ou mais eterno, sendo que este só pode ser concretizado na
memória que de nós a sociedade recolha e alimente pelos tempos fora. Recordemos
que, mesmo muito poderoso, após a sua morte, não passa de «…uma forma inerte,
embrulhada num pano, que cabe num caixão esguio: dois meses rolam, como duas
gotas numa vaga, e já nem mesmo se lhe distingue o vulto na vasta
impersonalidade do pó!» (Eça de Queirós, Notas
Contemporâneas «No mesmo hotel»). Ou seja. todos iguais, todos reduzidos a
um montezito de poalha química depois de abandonarmos a vida.
Ao longo da História, muitos seres que
de si deixaram famas, outros que nem por isso, foram obrigados a abreviar a
vida, quer por batalhas voluntárias ou não, quer por fatalidades inesperadas,
quer por condenações mais ou menos injustas. Nestes casos houve sempre um agente
externo a consumar a interrupção vital, um guerreiro inimigo ou um salteador,
uma tempestade ou um acidente, um tribunal e um carrasco. Na atual sociedade
portuguesa é hoje felizmente rara a morte guerreira e os tribunais já não
condenam à morte física; mas ainda é vulgar a morte não prevista provocada por
acidentes ou tempestades. A morte por doença súbita ou degenerativa prolongada não
devia contar muito para o caso: todo o ser biológico sente, sabe ou entende
que, desde que nasce tem um tempo de vida determinado, quer pelas qualidades e
defeitos do invólucro corpóreo, quer pelas agressões que o mesmo irá sofrer ao
longo da sua trajetória vital. E se é certo que as Ciências Médicas e a Arte da
Medicina muito têm contribuído para a melhoria da qualidade de vida dos
cidadãos em geral, sempre em nome de princípios universalizantes, quando o seu
exercício é confrontado com a vontade individual, aí surgem reticências e medos
de punições corporativas, jurídicas e sociais. Não será por acaso que alguns
médicos declararam que a eutanásia não era um ato médico.
A eutanásia, em última instância, é um
suicídio e a sociedade lida mal com ele. Normalmente mais utilizado por seres
excecionais do que pelos cidadãos vulgares, a não ser em situação patológica
grave onde a dor física se tornou insuportável, recordemos aqui os casos de
Soares dos Reis (1889, 41 anos), Camilo Castelo Branco (1890, 65 anos) e Antero de Quental (1891, 49 anos): os três decidiram por
fim à vida com um tiro de revólver na cabeça, por razões que a família e os
literatos que fizeram as suas biografias se apressaram a justificar, mas que
talvez valesse a pena rever à luz da crítica atual e das fontes disponíveis.
Outra questão é o tempo de agonia que cada um deles teve, sabendo-se que uma
bala na cabeça nem sempre é sinónimo de morte instantânea, havendo até quem
escape e recupere das lesões. Mas agonia, isto é, sofrimento físico
irreversível, estes três homens maiores da cultura portuguesa tiveram, mais ou
menos prolongada. À época não puderam recorrer à eutanásia, e, pelo menos dois,
o escultor e o poeta, foram julgados pela opinião pública como sendo ainda
muito novos para desejarem por fim à vida. Ninguém aceitou que eles tal
desejassem e o concretizassem pelas próprias mãos. Mas todos estaremos de
acordo que o que ficou deles não foi tanto esse efémero ato final, mas sim
aquilo que viveram transformado em Arte e Literatura, esse seu legado que ainda
hoje acolhemos e transmitimos como sua eternidade garantida.
No passado, em certos locais,
erguiam-se ermidas ao Senhor (ou Senhora) da Boa Morte, ou seja, da eutanásia,
que é o significado radical da palavra, crenças à parte. Afinal porque todo o
ser deseja uma despedida da etapa da vida «…sem sofrimento, tão serenamente,
que durante algum tempo [alguém o julgasse] adormecido… Não acaba mais
docemente um belo dia de Verão» (Eça de Queirós, A Correspondência de Fradique Mendes). Por isso só nos importa
desejar que a inevitável morte individual não seja apropriada pelos burocratas,
pelos judicialistas e pelos vendedores de quimeras na concretização da lei.
Ainda há por aí muito carrasco a querer punir-nos por termos vivido e gostado
da vida. Deixem-nos pois morrer em paz, felizes e de bem com a Humanidade,
eventualmente com uma pequena, desejada e consentida ajuda. O direito à nossa
própria morte é o último bem que teremos em vida.
J. A. Gonçalves Guimarães
Mesário-mor
da Confraria Queirosiana
Eventos
passados
NOVA ESTÁTUA DE HÉLDER DE CARVALHO
No passado
dia 2 de fevereiro foi inaugurada na Póvoa de Varzim, perto do seu Casino, uma
estátua de Fernando da Silva Gonçalves, o Nando (1940-2018), artista plástico, criador
do cartoon Zé da Fisga, soldado anarquista cuja guerra era outra, desenhador
publicitário e músico amador, desta feita imortalizado no bronze em pé e a
tocar violino, da autoria do escultor Hélder de Carvalho, que se vem afirmando
como um dos mais marcantes estatuários do nosso tempo. Na Póvoa é também de sua
autoria a estátua de Rocha Peixoto junto da Biblioteca Municipal.
MUSEU NACIONAL FERROVIÁRIO
No dia 3 de fevereiro, por
despacho conjunto dos membros do Governo responsáveis pelas áreas governativas
Infraestruturas e Habitação e Cultura , Manuel de Novaes
Cabral, ex-diretor do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto e quadro das Infraestruturas de Portugal,
S.A., foi designado para
presidente do conselho de administração da Fundação Museu Nacional Ferroviário
Armando Ginestal Machado, com sede no Entroncamento. Este museu conta a história do caminho-de-ferro em Portugal
enquadrada na história da Europa e do Mundo, com um legado de 160 anos e 36 mil
objetos desde os primórdios da locomotiva a vapor ao transporte ferroviário do
futuro.
FOTOGRAFIA E SAÚDE
No dia 17 de
fevereiro na Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto, organizado pelo
GERMEN - Grupo de Estudos e Reflexão em Medicina Narrativa, decorreu um
colóquio sobre Fotografia e Saúde no qual participou, entre outros oradores o
prof. Doutor Nuno Resende, como investigador do CITCEM.
PEDRA DE ARMAS AUTÁRQUICA
No
passado dia 19 de fevereiro, com a presença da Prof.ª Doutora Alexandra Leitão,
ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, do presidente da
Câmara de Gaia, Prof. Doutor Eduardo Vítor Rodrigues, do presidente da Junta de
Canelas, Sr. Arménio Costa, e do autor do projeto arquiteto Daniel Couto, entre
muitos outros convidados e cidadãos da freguesia, foi inaugurada o novo
edifício do Fórum de Cidadania de Canelas, o qual apresenta na fachada sul uma
pedra de armas em granito da Vila de Canelas, Vila Nova de Gaia, executada pelo
canteiro-ornatista Sr. António Pinto daqui natural.
Autores, Livros e
Revistas
No
passado dia 14 de fevereiro, no Arquivo Alfredo Pimenta na cidade de Guimarães,
foi feito o lançamento das Atas do II Congresso Histórico Internacional «As
Cidades na História: Sociedade», que aí decorreu em 2017, editadas pela
respetiva autarquia, compostas por seis volumes impressos, mas também
disponíveis online em:
ch.guimaraes.pt/minutes/2chi , nas quais, no seu vol. III – Cidade Industrial,
se apresentam quatro comunicações de membros do Gabinete de História,
Arqueologia e Património da ASCR- Confraria Queirosiana e Faculdade de Letras
da Universidade do Porto: BAPTISTA, Eva (2019) – “Pela Creche!” As dinâmicas sociais em torno da proteção da prole
infantil na sede do concelho de Vila Nova de Gaia, na viragem para o século XX.
In II Congresso Histórico Internacional
As Cidades na História: Sociedade, 2017- Atas, vol. III – Cidade Industrial.
Guimarães: Câmara Municipal, p. 157-186; GUIMARÃES, J. A. Gonçalves (2019) -Vila Nova de Gaia, a “Southwark do Porto”
nos primórdios da época industrial, p. 209-240; PACHECO, Elsa; ALVES, Jorge
Fernandes (2019) – Porto: a
cidade industrial e o sistema portuário, p. 135-156; e SANTOS, Licínio; TEIXEIRA, Maria de Fátima (2019) – O centro urbano de Vila Nova de Gaia em finais de Oitocentos, p. 323-350.
Está em distribuição o Boletim da Associação Cultural Amigos de Gaia
n.º 89 referente ao mês de dezembro de 2019 o qual apresenta, entre outros, artigos de COSTA, Virgília Braga da (2019) – A epidemia de cólera mórbus de 1855 e a construção de cemitérios em
Vila Nova de Gaia, p. 41-46; e de MONCÓVIO, Susana (2019) – Tapeçarias de Guilherme Camarinha
(1912-1994) na época áurea dos paquetes, p. 19-28.
Também em distribuição o Boletim da Associação Cultural Amigos do
Porto, 4.ª série n.º 4, de 2019, o qual apresenta, entre outros, artigos de
MONCÓVIO, Susana (2019) – O Escultor João
Joaquim Alves de Sousa Alão (1777-1837): contributos para a sua biografia, p.
95-116.
Próximos eventos
SOARES DOS REIS EM FILME
Na habitual palestra das últimas
quintas-feiras do mês no Solar Condes de Resende, a 27 de fevereiro pelas 21,30
horas, J. A. Gonçalves Guimarães falará sobre «Soares dos Reis na ficção áudio-visual: o filme de Francisco Manso para a
série Outonos da RTP2 (1993)», em grande parte filmado no roteiro biográfico e
artístico soaresiano de Gaia e Porto.
30.º FÓRUM AVINTENSE
Nos próximos dias 28 e 29 de fevereiro decorrerá
na Junta de Freguesia de Avintes o 30º Fórum Avintense, acontecimento único no
panorama da cultura local, o qual procurará fazer um balanço destas três
décadas de reflexão sobre esta freguesia gaiense. Os textos das comunicações
apresentadas entre 1990 e 2008 estão já publicados, prevendo-se a publicação
dos restantes a breve trecho. Nesta edição, entre vários participantes e temas,
J. A. Gonçalves Guimarães falará sobre «Análise dos contributos de 30 anos de
Fórum de Avintes. Para um novo paradigma da História Local».
V CONGRESSO DA MISERICÓRDIA
Nos próximos dias 5, 6 e 7 de março
decorrerá o V Congresso de História da Misericórdia do Porto subordinado ao
tema Misericórdia, Liberdade, Património, que decorrerá no Auditório D. Pedro
IV no Palacete Araújo Porto. Entre as comunicações a apresentar encontram-se as
seguintes pela ordem de apresentação: «Alguns negociantes da praça do Porto
irmãos da Misericórdia no período constitucional» por J. A. Gonçalves
Guimarães; «As Misericórdias na conjuntura crepuscular da I Republica: o I Congresso
das Misericórdias (1924)», por Jorge Fernandes Alves; «O “Álbum Sancta Casa da
Misericórdia Porto”: produção e reprodução de uma fonte histórica», por Nuno
Resende; «Mercadores de Vinho do Porto, beneméritos da Santa Casa (século
XVIII)», por António Barros Cardoso; e «A Santa Casa da Misericórdia do Porto nos inícios da Restauração
(1640-1650)» por Francisco Ribeiro da Silva.
MAFAMUDENSES
Para o programa “Meu Bairro, Minha Rua”
implementando pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, no próximo dia 12 de
março às 21 horas no Little Coffee,
localizado perto da Biblioteca Pública Municipal, J. A. Gonçalves Guimarães
falará sobre «Mafamudenses Ilustres». Os objetivos deste programa passam também
pela sensibilização dos moradores para os valores culturais dos locais de onde
são naturais ou onde residem, neste caso o lugar de Paço de Rei na freguesia de
Mafamude.
CURSO SOBRE REVOLUÇÕES E CONSTITUIÇÕES
Prossegue no
Solar Condes de Resende o curso sobre Revoluções & Constituições
comemorativo dos 200 anos da Revolução de 1820. Assim, a 15 de fevereiro teve
lugar a 9.ª sessão sobre «A Revolução da China (1911-1949)» por Fernando Rosas,
Professor Catedrático jubilado e Professor Emérito da FSCH/NOVA e investigador
do Instituto de História Contemporânea daquela universidade e, no dia 29 de fevereiro
terá lugar a 10.ª sessão sobre «O Maio de 1968» por J. A, Gonçalves Guimarães,
coordenador do Gabinete de História, Arqueologia e Património da ASCR-CQ.
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Eça & Outras, III.ª
série, n.º 138, terça-feira, 25 de fevereiro de 2020; propriedade dos Amigos do
Solar Condes de Resende - Confraria Queirosiana; C.te. n.º
506285685; NIB: 0018000055365059001540; IBAN: PT50001800005536505900154; email: queirosiana@gmail.com; www.queirosiana.pt;
confrariaqueirosiana.blospot.com; eca-e-outras.blogspot.com;
vinhosdeeca.blogspot.com; coordenação da página: J. A. Gonçalves Guimarães
(TE-164 A); redação: Fátima Teixeira; inserção: Licínio Santos.
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