terça-feira, 24 de abril de 2012

Eça & Outras


A Invenção da Alma

Livros há que deviam desencadear revolução mal saíssem do escaparate do livreiro para a estupefação do leitor. Não a revolução violenta e botabaixista a que a História nos habituou, mas a interior, a que resultasse da varredela que cada um fizesse na sua alma, esse frigorífico, pessoal ou coletivo, branco como convém, sem as segurezas do cofre inviolável e sempre à mão para guardarmos à temperatura conveniente a memória em filetes e as convicções em saquinhos, prontos a usar em qualquer repasto social que tenhamos de confecionar, em grande ou pequena escala, cada um por si ou, soma disso tudo, como povo.
Como arqueólogo, mais habituado às materialidades dos objetos e ao mobiliário da história, para mim a alma concebo-a como um indispensável eletrodoméstico pessoal ou coletivo – existem armazéns frigoríficos – evidentemente com vários modelos e versatilidades, mas, no fundo, no fundo, muito idêntica de pessoa para pessoa, de povo para povo. As diferenças estarão no que lá se arruma, no que lá se esquece, no que lá se pensa que se tem e, quando se vai buscar para servir, ou já não está capaz, até porque passou o prazo de validade, ou já se guardou deteriorado. E depois, a quantidade de “alimentos” inúteis ou que aí fomos guardando, que nos dão “refeições” artificiais, estragadas ou ilusórias, é verdadeiramente assombrosa. Mas reflexão muito melhor sobre estes assuntos acaba de publicar Jaime Milheiro, psiquiatra e psicanalista, um livro intitulado “A Invenção da Alma, um olhar psicanalítico”, com prefácio de Eurico Figueiredo pela Editora Fim de Século, o qual reúne uma coletânea de conferências, entrevistas e outros escritos que têm como fio condutor a quase totalidade das atitudes humanas perante o que cada um faz e pensa de si próprio, as orfandades que tem e que não consegue superar, os jogos de habilidades sociais e coletivas, os grandes e pequenos mitos da quotidianidade. E se a curiosidade vos acompanhou até aqui, saibam que para o autor o meu frigorifico nem sequer existe, como muito bem demonstra no capítulo “A invenção da alma”, onde, entre muitos outros considerandos pertinentíssimos, pergunta pela sua rota histórica, ou seja, quem a inventou, a partir de quê e para quê e se um “desalmado” será muito pior pessoa do que as pias almas do passado, do presente e do futuro que conhecemos. Mas, mas então, tantos séculos de lutas e de progresso da humanidade prescindem assim, com uma penada deste pensador que remete para as inutilidades do sótão humano essa (a expressão é do autor) entidade voadora? Aí explica que somos dados à “misteriosidade” (outro conceito seu) desde que nascemos e que já foi nessa escola que fomos concebidos e gerados, pois de outro modo ainda saltaríamos descontraídos de galho em galho, conforme magistralmente descreveu São Darwin. Pois, mas essa “misteriosidade” tem-nos dado problemas porque passamos a querer muito mais do que a ração de bolota quotidiana disponível. E daí foi um passo para as pequenas e grandes ansiedades e a invenção da religião, da justiça e da ordem social, que distribui a cada um a ração que entende caber-lhe, o que gera enormes zangas pessoais e coletivas que só a mentira e os mentirosos aquietam temporariamente. E, em vez de cada um procurar saber ao certo qual a figura que lhe cabe neste jogo de xadrez, desenvolvemos elaboradas teorias da conspiração que deram origem a novas profissões como os comentadores e os politicólogos, pois ninguém lhes quererá chamar “aldrabões encartados” e, no fundo, como conclui Jaime Milheiro «é preciso confiar para haver cidadania», ainda que sejam demasiado ruidosos os «jogos de inveja e (in)gratidão» que existem e sempre existiram levando o autor a interrogar-se «Sorte e azar»: onde estarão os deuses?».
Por fim, quase no fim, mas ainda a cinquenta páginas do fim do livro, o autor arrima-se a musicas e silêncios na procura da sua insofismável beleza que a sua condição profissional de psicanalista tão bem conhece e que se revelam em luminosidades humanas quando os seres que analisou se despem da alma, essa vestimenta que nos oculta de nós e dos outros e que já herdamos à nascença sem ser feita à nossa medida, remendada, tresandando a sebos de problemas por resolver ao longo das eras, e que raramente nos assenta bem, ainda que retocada pelos alfaiates e modistas de serviço.
Eça de Queirós, que é artista da palavra e não tem obrigações de cientificidades, descreveu-nos como «… figurinhas de biscuit, criaturinhas dessoradas, cheias de humores linfáticos, dum miúdo de figuras de missanga, duma amarelidão de hospital. Nem andam, nem riem, nem se movem, nem pensam: resvalam. Têm um sorriso desfalecido, os rins quebrados, os braços moles – um ar gelatinoso: é uma raça caquética, minada, espremida, lassa, cor de pele de galinha» (A Tragédia da Rua das Flores). Neste seu livro, Jaime Milheiro explica-nos agora que muito de tal se deve à alma, uma «… das mais inspiradas invenções dos seres humanos» a qual, se a eliminássemos da nossa mente e da nossa vida «desenvolver-se-ia o sentido da responsabilidade, aumentar-se-ia o sentimento de justiça, elevar-se-ia a humana condição. Sem almas em risco, sentir-nos-íamos mais pessoas e melhores pessoas» (p.33).
Mas, provavelmente, ainda que muitos de nós leiam o seu livro e até abanem aqui e ali a cabeça em assentimento, tendo o olho nas lombadas das obras sobre anarquismo e niilismo, continuaremos todos inscritos nas nossas confrarias das almas fritando-nos a nós próprios, ou deixando-nos tostar, no lume nem sempre brando das conveniências.

J. A. Gonçalves Guimarães

Livros e textos

1ª edição 1971
O Rebate

Editado pela primeira vez em 1971, O Rebate é um romance do nosso confrade José Rentes de Carvalho passado numa aldeia transmontana confrontada com as liberdades sexuais da mulher francesa de um seu emigrante que regressa à terra natal para mostrar o seu sucesso na vida, mas que se tem de confrontar com a falsa pacatez e moralidades circundantes de um mundo reprimido pelas conveniências das autoridades religiosas e policiais, a que nem o jovem pároco escapa. Um verdadeiro retrato do Portugal salazarento sem perspetivas, como se tem visto, dos “amanhãs que cantam” contado em linguagem cinematográfica de uma incrível frescura e permanência a que o escritor nos tem habituado.
Passados quarenta anos, esta nova edição está nos escaparates desde 13 de Abril e será apresentada na Feira do Livro de Lisboa no próximo dia 28 de Abril às 19 horas e depois noutros locais.
Entretanto veja o seu blogue “Tempo Contado”.

Enciclopédia Einaudi

Ele há pessoas assim: J. M. Leal da Silva, engenheiro químico e mestre em Antropologia «tendo experimentado a dificuldade de abordar na especialidade alguns dos 43 volumes»… da Enciclopédia Einaudi, procurou «… de uma forma simples e rápida elaborar, como apontamentos pessoais, índices auxiliares que permitissem localizar os respetivos temas» e que agora põe à disposição gratuita de todos os interessados enviando-os por email para todas as Bibliotecas Municipais ou para quem os quiser receber. Por sua expressa autorização vamos colocá-los no confrariaqueirosiana.blogspot.com, partilhando assim a generosidade do autor destes índices.

Exposição

Amadis de Gaula

A partir do próximo dia 11 de Maio e até ao fim de Junho estará patente no Solar Condes de Resende uma exposição sobre Amadis de Gaula Cavaleiro Medieval, cujo romance terá sido escrito no século XIV por Vasco de Lobeira. Editado a primeira vez em Espanha em 1508 tem várias edições e adaptações recentes.
Comissariada por José Valle de Figueiredo, esta exposição apresenta uma exaustiva pesquisa temática editorial e estética sobre este apaixonante tema da Cultura Portuguesa que inspirou compositores como Lully, Haendel, Bach, Messenet e Ivo Cruz.



Noticias
175 anos do Real Gabinete

O Real Gabinete Português de Leitura no Rio de Janeiro, Brasil, comemora em 2012 os seus 175 anos de existência, pois foi fundado em 1837. O atual edifício sede, um insuperável templo da Portugalidade no mundo, foi inaugurado em 1887, tendo no ato estado presente o escritor Ramalho Ortigão.
Possui a maior e mais valiosa biblioteca de obras de autores portugueses fora de Portugal, totalmente informatizada e, além de livros e manuscritos raros e valiosos, possui ainda notáveis coleções de pinturas, escultura, ourivesaria e numismática portuguesa. Realiza cursos de Literatura, História, Antropologia, Artes e Linguística destinados principalmente a estudantes universitários.
É seu atual presidente o poveiro Dr. António Gomes da Costa.


Confrarias

Delegação da Confraria Queirosiana
na Confraria da Fogaça



No passado dia 1 de Abril a Confraria Queirosiana esteve presente no Ciclo do Borrego organizado pela Confraria da Moenga na cidade onde Eça de Queirós dirigiu o jornal Districto de Évora em 1867.
No dia 15 de Abril fomos parabenizar a Confraria da Fogaça ao Castelo da Feira no seu 10º aniversário.
No dia 28 de Abril estaremos no 2.º capítulo da Confraria dos Sabores de Sintra, de que a Confraria Queirosiana é madrinha.
Nestas realizações gastronómicas os corpos gerentes da Confraria Queirosiana estabelecem diversos contatos para a realização de atividades culturais conjuntas.


Arqueologia

Os arqueólogos do projeto CASTR’UIMA do Gabinete de História, Arqueologia e Património dos ASCR-CQ têm estado presentes em diversos eventos científicos onde têm apresentado os resultados da análise do espólio das escavações arqueológicas do Castelo de Crestuma. Assim, no passado dia 14 de Abril, António Manuel Silva e Laura Peixoto participaram no 1.º Encontro de Cerâmica Medieval do Norte e Centro de Portugal (séc. IX-XII) que decorreu no Museu Monográfico de Conimbriga. Nos próximos dias 3 a 5 de Maio estarão presentes no 1.º Congresso Internacional sobre Arqueologia de Transição que decorrerá na Universidade de Évora.

Núcleos bibliográficos

A biblioteca dos Amigos do Solar Condes de Resende-Confraria Queirosiana, tem, neste momento, os seguintes núcleos bibliográficos organizados pelos doadores ou a partir das indicações dos seus antigos proprietários:
- Núcleo Manuel Inácio Luís e incorporações posteriores por seu filho Acácio Edgar Alves Luís: Anarquismo e questões sociais.
- Núcleo Teófilo Braga coligido por sua discípula professora Drª. Júlia Cunha: Bibliografia sobre Teófilo Braga, manuscritos e fotografias; documentos e bibliografia da discípula.
- Núcleo Rocha Artes Gráficas: Livros, periódicos, opúsculos e outros impressos desde os anos 60 do século XX desta empresa fundada em 1895.
- Núcleo Dr. Raul Ferreira da Silva: livros e outros que pertenceram a este médico otorrinolaringologista organizados pelas áreas de sua especial predileção: Medicina e História da Medicina; História de Portugal; História do Mundo; História do Desporto; História da Arte; História da cidade do Porto; Geografia e Viagens; Revistas.
Estes núcleos bibliográficos estão à disposição dos interessados durante o horário de abertura do Solar Condes de Resende.

Brindar com Porto

Beber um Porto sim, com: Jorge Miranda, pela defesa do uso da língua portuguesa em Portugal e no Mundo; Isabel Moreira, a deputada independente; Günther Grass, porque não existem bombas atómicas “boas” e outras “más”; Ai Weiwei, o artista vigiado.

Eça & Outras, IIIª. Série, n.º 44 – Quarta-feira, 25 de Abril de 2012
Cte. n.º 506285685 ; NIB: 001800005536505900154
IBAN:PT50001800005536505900154;Email :queirosiana@gmail.com; confrariaqueirosiana.blospot.com;
eca-e-outras.blogspot.com; coordenação da página:
J. A. Gonçalves Guimarães (TE-638); redação: Fátima Teixeira; inserção: Amélia Cabral.

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